sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

3730) O talento e o esforço (6.2.2015)


(ilustração: Saul Steinberg)


Existem obras literárias que dão a impressão de ser a coisa mais fácil do mundo. A gente pensa que o sujeito sentou e digitou aquilo em dez minutos, de tão espontâneo e fluido que fica o poema, o conto, o parágrafo de artigo ou de romance.  

Às vezes é assim, sim, mas nem sempre.  Às vezes só se chegou àquela fluidez final depois de ralar muito.  O texto ideal, num sentido imediato, é aquele que tem muita elaboração oculta sob uma superfície aparentemente simples. A primeira leitura dá um sentido imediato.  A segunda traz outro, a terceira mais um, a quarta... A gente começa a perceber sonoridades, jogo de sinônimos, uma ambiguidade proposital ali, uma referência sutil acolá... 

O texto continua ali, claro. Uma quadra de Pessoa ou de Cabral, um soneto de Drummond ou de Bandeira, um epigrama de Millôr ou de Quintana, mas aos poucos vamos reconstituindo os mil afluentes que resultaram naquela correnteza transparente, límpida.

Ariano Suassuna tinha um conhecido que gostava de fazer trocadilhos, mas eram trocadilhos extremamente forçados, tortuosos.  Por exemplo, ele encontrava Ariano na cidade e dizia: “Pois é, rapaz, você é um cara íntegro, uma pessoa tão inteira, tão una...  E num calor como esse que está fazendo... Suas, una?”  Ele se acabava de rir com esse exemplo e dizia: “Imagine só as noites em claro que ele tinha de passar pra chegar a esse resultado!”

O livro mal escrito é assim: é uma tentativa de idéia para a qual o autor nunca acha o caminho mais adequado e acaba jogando sua idéia inicial no colo do leitor dessa forma, uma forma complicada, desajeitada, algo tão distinto da maneira normal de pensar e de falar que precisa de um certo esforço para se entender.  

Quando o texto literário precisa de um esforço muito grande do entendimento para captar o primeiro sentido, o mais superficial, alguma coisa está errada.  Uma frase que precisa ser lida duas vezes ou é uma frase genial ou é uma frase mal escrita (o que é muito mais frequente).

Não devemos confundir esse desajeitamento com o caso do autor que domina mil técnicas e cuja cabeça funciona de modo intrincado, complexo (Thomas Pynchon, David Foster Wallace, etc.).  Neste último caso, é pegar ou largar. A prosa do cara é toda naquele registro, mas ele mostra que é competente porque para cada dificuldade mal resolvida aparece meia dúzia que nos dão um raro prazer estético que não imaginávamos existir.  

Quanto mais difícil um texto, maior a recompensa estética que deve resultar da leitura.  Se a recompensa de todo o nosso esforço é na faixa de “suas, una?”, amigo, melhor ir fazer outra coisa do seu tempo e do tempo alheio.









Um comentário: