quinta-feira, 15 de maio de 2014

3499) O filme de Clodoaldo (15.5.2014)



Clodoaldo era dono de um bar pros lados de Bodocongó, rodeado pelo campus da UFCG. Era amigo dos estudantes. Aprendeu na carne e no sangue o que é permitir um caba liso assinar um vale. Mas era uma alma boa, inteligente, lia muito, gostava de papo, e era tão maluco quanto qualquer universitário. 

(Quem segurava as pontas financeiras do bar era a mulher dele, que ele chamava de Receita Federal: “Vocês podem beber em paz aí, que a Receita Federal tá contabilizando tudo.”)

Clodoaldo ganhou uma quadra da Mega-Sena e resolveu dirigir um curta. Chamou o pessoal do curso de Arte & Mídia para trabalhar na equipe, prometendo pagar “tabela do sindicato”. 

O pessoal foi, mais pela curiosidade e pela farra, mas os problemas começaram no roteiro. Cadê o roteiro, Clodoaldo? “Tá todo aqui,” dizia ele subitamente sério, com o indicador apontando a têmpora, firme como um revólver. Qual era a história? Um dia ele dizia: “É uma interpretação urbana do cangaço e da cultura da mandioca.”  Tempos depois, dizia: “É uma guerra entre uma família pobre e uma família rica.”  Noutro dia era: “É a história de um cara que tudo que faz dá errado.”

Na primeira semana de filmagem, ele disse a Duda, o fotógrafo: “Essa cena eu quero com a câmara em cima de um ônibus”. 

Duda: “Mas não são duas pessoas conversando? Melhor a câmara parada.” 

Ele: “A gente combina com o motorista pra passar bem devagarinho.” 

Duda: “Mas por que tem que ser o ônibus?” 

Ele: “Eu acho tão bonito, uma câmara em cima de um ônibus!”

Ele inventou de filmar uma briga de faca em que cada vez que uma faca batia na outra se ouvia um tiro de revólver, mas recusou edição no estúdio, a sincronização tinha que ser feita na hora, com um cara mais atrás disparando cartuchos na hora certa. “Dá muito trabalho, Clodoaldo”. E ele: “Tudo que é bem feito dá trabalho. Vocês pensam que isso aqui é Hollywood, onde tudo é facilitado?!”.  

Clodoaldo sujou o prontuário policial de toda a equipe ao invadir a Prefeitura com um grupo de cangaceiros (“tem que ser sem pedir licença, quero espontaneidade”). Discussões acaloradas em cada dia de filmagem. Câmara de cabeça pra baixo (“pra simbolizar a inversão de valores morais”).

Quando o filme ficou pronto, foi inscrito num festival na Alemanha. Mas o dinheiro da Quadra já tinha acabado, e Clodoaldo não pagou a ninguém. 

O pessoal rompeu com ele, e passou a beber no bar de Dionísio, que era perto. Por vingança, nem avisaram a Clodoaldo quando receberam a notícia de que o filme tinha ganho o prêmio especial da crítica. “Quem manda ser xexeiro?”, resmungava Duda. “E se ele se animar, vai querer fazer um longa e aí lascou-se tudo.”






3498) Palavras intraduzíveis (14.5.2014)



(alemão: "Uma cara que tá pedindo pra levar um murro")

Este saite (http://tinyurl.com/qbl6zgw) tem 23 ilustrações interessantes baseadas num conceito que sempre me fascina: palavras que existem numa língua mas não em outras. A gente tem a noção meio ingênua de que para tudo existe uma palavra específica, mas a verdade é que toda língua tem termos que só podem ser traduzidos com longas explicações e circunlóquios. Eis alguns exemplos:

Fernweh (alemão) – sentir saudade de um lugar onde nunca se foi. 

Papakata (Ilhas Maori) – ter uma perna mais curta do que a outra. 

Tingo (ilha da Páscoa) – furtar gradualmente todas as posses de um vizinho, apenas pedindo emprestado e não  nãnão não o devolvendo. 

Tsundoku (japonês) – o ato de deixar um livro sem ler, depois de comprá-lo, tipicamente guardando-o junto a outros livros na mesma condição. 

Waldeinsamkeit (alemão) – a sensação de estar sozinho num bosque.

Pochemuchka (russo) – uma pessoa que faz muitas perguntas. 

Aware (japonês) – a sensação doce-amarga de um momento breve e passageiro de beleza transcendental. 

Gattara (italiano) – uma mulher idosa e sozinha que se dedica a gatos perdidos. 

Won (coreano) – a relutância, da parte de uma pessoa, de abandonar uma ilusão. 

Ilunga (tshiluba) – uma pessoa disposta a perdoar qualquer tipo de abuso pela primeira vez, tolerá-lo uma segunda vez, mas nunca uma terceira. 

Prozvonit (tcheco) – o ato de ligar para um celular e dar apenas um toque, para que a outra pessoa ligue de volta, fazendo-nos economizar dinheiro ou créditos.

Note-se que não é a sensação ou a idéia que são intraduzíveis, pelo contrário, em geral são noções que entendemos facilmente. Mas não temos uma única palavra para exprimir essa idéia. Mais ou menos. A pessoa que tem uma perna mais curta do que a outra é chamada no Nordeste de “29-30”, não sei porque (talvez para indicar numericamente a pequena diferença entre as duas). Gente que faz muitas perguntas é “perguntador”. Nos outros casos (e nos demais termos que não transcrevi aqui), não tem jeito, é preciso uma descrição. Não temos palavras diretas.

Esta é uma das muitas questões delicadas que um tradutor precisa enfrentar, porque mesmo uma língua tão familiar a nós como o inglês está cheia de pequenos substantivos ou verbos que lá são usados com toda naturalidade mas para os quais o português não se deu o trabalho de criar um equivalente em escala 1:1.  Quando um termo assim aparece, obriga-nos a alongar explicativamente uma frase que tinha outro ritmo, outro formato, outra intenção. Às vezes até passa, com autores de prosa mais diluída e extensa; mas naqueles prosadores onde tudo é exato, tudo é compacto, tudo é ritmicamente encaixado e preciso... aí o bicho pega.