terça-feira, 15 de abril de 2014

3473) Começar pela pintura (15.4.2014)




Um professor nos disse certa vez: “Começar a escrever um romance preocupado com o estilo é como começar a construir uma casa pela pintura, depois pensar onde vão ficar as paredes, e só no fim planejar em que rua vai ser a casa.”  


Exagero, é claro. Até porque a relação entre estilo e história não é a relação entre pintura e parede. Estilo não é uma coisa exterior que se espalha sobre algo de natureza diversa que foi colocado antes.  Estilo e história são como a casca da fruta e a “carne” da fruta. Coisas diferentes mas entrelaçadas, que crescem juntas, a partir de um só impulso inicial e do mesmo material genético.

Já citei aqui George Lucas, para quem de nada adianta ter 15% de um roteiro perfeito e não ter o resto. “Escreva tudo, até o The End,” aconselha ele; “depois volte ao começo e venha ajeitando. O importante é trabalhar em cima de algo já feito de ponta a ponta.”  

Essa recomendação pode até sofrer ressalvas de quem (como eu) acha Lucas um roteirista apenas sofrível, na melhor das hipóteses.  Mas não difere muito do que Raymond Chandler, um grande intuitivo que detestava planejar enredos, dizia numa carta a seu amigo Charles Morton em 1945: 

“Improvise a história o melhor que puder, com muito ou com pouco detalhe, conforme a inspiração do momento, escreva os diálogos ou deixe para depois, mas registre o andamento, os personagens, dê vida à história. Começo a perceber que um grande número de histórias são desperdiçadas por nós, sujeitos ultra-meticulosos, simplesmente porque permitimos que nossa mente fique paralisada por causa de pequenas falhas, em vez de permitir que ela trabalhe por algum tempo livre daquele supervisor crítico que fica implicando com cada coisinha que não ficou perfeita”.

Chandler sabia que uma história, e ainda mais um roteiro de filme (que é uma experiência sensorial e dinâmica, antes de chegar à alfândega do intelecto) depende desse andamento, desse movimento interno desencadeado pelo que acontece às pessoas e pelo modo como as pessoas reagem ao que lhes acontece, desencadeando novos fatos e novas reações, e assim por diante. 

Seus famosos atritos com Hitchcock (durante a roteirização de Pacto Sinistro) se deram porque Hitchcock não estava nem aí para as motivações íntimas dos personagens. O que lhe importava era o impacto visual, a dinâmica entre montagem e fotografia; não tem coisa mais improvável do que alguém querer fugir de um bando de espiões escalando os rostos esculpidos no Monte Rushmore (Intriga Internacional), mas ele sabia que o público ia ficar de boca aberta.  

Os dois estavam certos, ele e Chandler; apenas queriam fazer tipos diferentes de filme.