quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

3687) No Campo de Centeio (18.12.2014)



Dizem que o ato mais anarquista da arte moderna foi quando Marcel Duchamp foi numa loja de material de construção, comprou um mictório de porcelana branca, daqueles de banheiro público masculino, e o mandou para uma exposição, com o título “Fonte”. Hoje, parece até um gesto acadêmico. Duchamp pegou um objeto industrializado, anônimo e anódino, e esfregou na cara de todo mundo que aquilo era uma obra de arte pelo simples fato de que ele estava dizendo. Tudo isso foi num contexto de uma certa impaciência dos artistas com a catação-de-lêndeas dos teóricos, cuja função é pegar dois fios de cabelo contíguos e dizer que um deles é arte e o outro não é.  A mesma situação que fez Mário de Andrade desabafar: “Conto é tudo aquilo que o autor chama de conto”.

A onda agora é o que chamam “appropriation art”, “arte da apropriação”, e na verdade é a industrialização e mercantilização do que Jorge Luís Borges havia sugerido (como “experiência pensada”, de caráter filosófico e estético) no conto “Pierre Menard, o autor do Quixote”. Pierre Menard decidiu reescrever o Dom Quixote e até conseguiu em alguns momentos reproduzir (sem consultar o original) trechos inteiros da obra de Cervantes!  Os apropriartistas (se este termo pegar, favor citar o Jornal da Paraíba e a data de hoje) vão além.  Pegam uma obra de arte criada por outra pessoa (e não um objeto qualquer) e a expõem como se fosse sua.

Vejam o caso de Richard Prince, um notório apropriartista norte-americano.  Sua façanha mais recente foi a publicação de O Apanhador no Campo de Centeio, o romance de J. D. Salinger, em seu próprio nome. Uma reprodução quase idêntica da primeira edição do livro, de 1951, mesma capa, “um perfeito fac-símile do original, inclusive o papel espesso e cremoso e a clássica tipologia”. Os comentários elogiosos ao autor permanecem na contracapa só que em nome de “Richard Prince”.  O qual, num rasgo de modéstia ou de dominação, insere na página final a nota: “Esta é uma obra de arte de Richard Prince. Qualquer semelhança com um livro é coincidência, e não foi intencional da parte do artista”.  Cópias não assinadas da obra são vendidas ao preço de algumas centenas de dólares; cópias autografadas, na casa dos milhares. Exatamente os preços atuais de cópias da primeira edição do livro, autografadas por Salinger.

Prince é um picareta? Não sei. Ele é pintor também, e seus quadros valem milhões. Dinheiro com isso ele não está ganhando. Está querendo enganar alguém? Se o quisesse, não estaria usando um dos livros mais famosos do país.  Preciso de uma teoria a respeito, mas meu espaço acabou, ufa. Daqui pra amanhã eu arranjo.


2 comentários:

  1. Acho que a própria discussão é a obra. Da mesma forma em que Piero Manzoni colocou a venda suas noventa latas com "merda de artista em conserva" ao mesmo tempo criticando o consumo de literalmente qualquer merda, desde que venha de um artista. No caso de Richard Prince a discussão sobre se é ou não uma obra de arte, ou ainda, se é ou não uma obra original, é que retrata a verdadeira obra. Guto Lacaz a algum tempo a idéia de publicar um trabalho, que nada mais era do que o desenho do ícone de uma impressora. Em um dos quadros ele escreveu ORIGINAL, embaixo. No outro ele escreveu CÓPIA. Ele nunca fez outro original, mas reproduziu e vendeu várias cópias. As vezes a Obra é o que Sobra.

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  2. Eu penso assim às vezes, mas volto a pensar que a discussão é uma "obra crítica", não uma "obra artística". Existe uma tendência para achar que a arte pode ser apenas uma discussão de idéias sem a produção de objetos (físicos, verbais, musicais, etc.). Pode até ser que a arte do futuro tenda a ser assim, mas eu acho um desperdício você parar de produzir objetos artísticos de toda natureza e ficar somente discutindo teoria.

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