quinta-feira, 27 de novembro de 2014

3669) O Inferno é um rehab (27.11.2014)



(ilustração de William Blake para a Divina Comédia de Dante)

Numa entrevista concedida certa vez a Geneton Moraes Neto, Ariano Suassuna falou sobre o assassinato de seu pai João Suassuna (morto de emboscada numa rua do Rio, por um pistoleiro a mando de líderes políticos adversários).  Sabendo que estava jurado de morte, João deixou uma longa carta para a esposa e os filhos, dizendo que era inocente do crime de que os inimigos o acusavam (de ter ordenado ou incentivado o assassinato do governador João Pessoa), e dizendo: “Se eu for morto, não se vinguem. Não se tornem assassinos por minha causa.”

O assassino foi condenado a quatro anos e cumpriu dois; viveu até uma certa idade, e houve uma época em que morou a poucos quilômetros de onde viviam a viúva e os filhos da vítima, a esta altura todos adultos. Inquirido pelo repórter, Ariano admitiu que passou a vida dividido entre essas duas forças opostas, a possibilidade de vingança (e, de acordo com um certo código sertanejo, a obrigatoriedade moral da vingança), e do lado oposto a serenidade do pai e a firmeza da mãe.  E ele diz a certa altura: “Eu já cheguei a rezar por ele”.  Geneton pergunta: “E o que falta para perdoá-lo?” Ele diz: “Sentir por ele o mesmo que sinto pela minha esposa, meus filhos, meus amigos”.

Ariano tinha essa angústia moral dostoievskiana diante da face torva do mundo. Diz ele na entrevista que considera o inferno como uma parte mais profunda do purgatório, um lugar de expiação, onde as almas sofrem uma purificação pelo sofrimento e de onde um dia podem emergir, redimidas.  “Eu me recuso a acreditar na eternidade do inferno,” diz ele na entrevista. “Isso seria um absoluto, e absoluto só Deus. E hoje, depois de pensar muito anos, eu diria que estou me aproximando do perdão, porque se dependesse de mim a permanência dele no inferno, eu diria: pode sair.”

Tenho uma formatação mental diferente, não acredito em inferno nem purgatório. Uso esses conceitos como parâmetros, porque são da nossa cultura e determinam as ações de muita gente. Sempre achei que, nesses termos, quando o cara vai para o inferno é uma queda sem volta, mas entendo também essa concepção de um inferno apenas temporário, um purgatório para as almas mais encardidas. O inferno é o “rehab” das almas recalcitrantes.  E me comove pensar que, pelo menos em vida, as vítimas sofrem mais do que os criminosos, porque estes, muitas vezes (assassinos, estupradores, etc.), não se arrependem, não estão nem aí.  Dão risada.  São as vítimas (algumas delas) que sofrem por eles.  Sofrem por terem sido maculadas pelo Mal, purgam dentro de si sua tragédia, acabam se purificando e se engrandecendo para poder neutralizar o Mal que as tocou.





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