Artigos de Braulio Tavares em sua coluna diária no "Jornal da Paraíba" (Campina Grande-PB), desde o 0001 (23 de março de 2003) até o 4098 (10 de abril de 2016). Do 4099 em diante, os textos estão sendo publicados apenas neste blog, devido ao fim da publicação do jornal impresso.
sexta-feira, 29 de agosto de 2014
3590) Meu pequeno crime (29.8.2014)
Eu tinha pegado um daqueles voos que saem da Paraíba de madrugada e aterrissam no Galeão ao amanhecer, um voo cansativo, e a coluna me incomodando. Desci apressado, cruzei o saguão e entrei na fila do táxi, na calçada do desembarque. Tinha umas oito ou dez pessoas na minha frente. Os carros vinham chegando de um em um, enchendo e partindo. Quase no começo da fila tinha um gringo. Um cara de 30-e-poucos anos, rosto sério de gringo, roupas desajeitadas de gringo, duas malas enormes e algumas sacolas. Quando o táxi foi se aproximando, ele moveu a posição das sacolas e eu vi alguma coisa cair no chão.
Era um pacotezinho de plástico com algumas coisas dentro, parecia um saquinho com cartões, um ou outro documento, a ponta de plástico enrolada e dada um nó. Quando aquilo caiu no chão o cara estava preocupado com o equilíbrio das sacolas em cima da mala enorme (nisso o táxi dele já vinha encostando no meio-fio), e não viu. Esperei que as pessoas atrás dele, mais próximas, mostrassem a queda do objeto. Ninguém se mexeu. Eu podia ter mostrado. Nem precisaria conversar, arriscar meu inglês. Bastaria fazer “Ei!” bem alto, erguendo o braço, e, quando ele olhasse, apontar o pacotinho no chão.
Não o fiz. Fiquei somente olhando enquanto ele e o motorista botavam a bagagem na mala do carro, ele se acomodava com suas sacolas no banco traseiro e o táxi ia embora. O pacotinho ficou no chão. Ninguém viu. As pessoas seguintes passaram as rodinhas de suas malas por cima dele. Quando chegou minha vez, embarquei também e fui embora.
Por que não ajudei o cara? Não me custava nada. “Ei!” – e apontar o chão. Podia não ser nada, podia ser algum comprimido para enjoo, sem maior valor. E podia ser um documento, um cartão, algo essencial quando se está em terra estranha. Não avisei porque fiquei esperando que as pessoas mais próximas o fizessem. E depois não o fiz porque estava cansado, impaciente, doido pra meu táxi chegar logo. O cara foi embora com o problema dele, e eu vim embora com os meus.
A pior coisa, quando a gente faz uma desatenção assim, é que o mundo não se acaba. E você começa a achar que já que o mundo não se acabou, nunca mais vai se acabar. E aí tome a fazer o que dá na telha; tudo é permitido. Era bom que, cada vez que a gente praticasse uma maldade omissa ou forçosa sobre alguém, pelo menos alguma pequena catástrofe ocorresse em seguida, para se saber que aquilo ali incomodava o Universo, era uma desarmonia, desequilibrava tudo em volta e requeria compensação. Todo pequeno gesto conta. Toda pequena gentileza casual conta. Toda chance que fez vapt e depois fez vupt, os quatrocentos golpes de cada dia. Tudo conta.
Tudo conta, sim. Sobretudo no plano imaterial, em que as relações humanas, permeadas por valores do tipo Imperativo Categórico, kantiano, ocorrem no plano da intenção e da ação. Daí os provérbios populares. Nesse caso, "faça aos outros o que vc gostaria que os outros te fizessem."
ResponderExcluirE, dentre aqueles que ouvi de meus avós: "Direito tem, quem direito anda." Esse, carrego na consciência e na prudência.
É verdade. Conta pq na cabeça da gente, se torna uma coisa grande, mesmo que a coisa lá fosse pequena. Se vc tivesse agido, no mínimo não ficaria mais pensando. Passaria. Como não agiu, a cousa ficou moendo. Lembra momentos do "Crime e Castigo", com a diferença que lá era um crime mesmo. Esse tipo de coisa acaba mesmo sendo um pequeno crime. E se foi grande...? Eis a questão. Não sabemos mesmo o que tinha no pacote! Tua compensação é essa. Se não sabemos, então também não podemos julgar.
ResponderExcluirLembrei de um filme perturbador do Antonioni, acho que se chama Crimes da Alma. O sujeito despede-se da moça, que está de costas pro elevador; ele vê que a porta se abre e o elevador não está parado no andar. Não fala nada, ela se vira, tudo muito rápido, e cai. Não lembro mais nada. Essa cena já foi forte o bastante.
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