sexta-feira, 8 de agosto de 2014

3572) "Clara dos Anjos" (8.8.2014)





O romance é, muitas vezes, um círculo enxergado e analisado por um ponto externo a ele, que é o autor. 

O autor que tem intenções sociais, históricas, psicológicas, etc., prepara seu enredo como um laboratorista prepara uma lâmina a ser submetida ao microscópio. Ele tem uma opinião formada sobre o mundo e escreve o romance para ilustrar sua tese, porque admite que a tese sem as ilustrações ficaria chata demais. 

Ele narra a história, e opina sobre o que está acontecendo. Conta o que um personagem fez, e logo se detém para explicar as motivações do personagem. Ação e teoria se alternam e se confundem no romance realista, de tese.

Clara dos Anjos (1948, póstumo) de Lima Barreto conta a história de uma mulatinha ingênua que se deixa seduzir por um mau-caráter, um pilantra, aquilo que em Campina se chamava “colecionador de cabaços”. A desgraça se anuncia nas primeiras páginas e se consuma nas últimas. 

Lima Barreto descreve e comenta seus personagens o tempo inteiro. As oficinas literárias nos dizem: “show, don’t tell”, “mostre em vez de dizer”. (Há teóricos que, com bastante fundamento, combatem a ditadura dessa norma, como Wayne C. Booth em The Rhetoric of Fiction, 1961/1983.)  

Lima Barreto mostra, mas também diz; era uma característica da literatura de seu tempo, de repisar a “moral da história”, por ver na literatura uma missão educativa, forjadora do caráter, distribuidora de lições de cima pra baixo.

O livro é ruim? Pelo contrário, o livro é muito bom. E fica melhor ainda quando (voltando à imagem inicial) não vemos somente o círculo que o autor nos mostrava, mas somos capazes de traçar um círculo mais amplo, envolvendo o círculo e o ponto externo a ele, e ver tudo com mais distanciamento. 

Dessa forma o romance absorve, e não rejeita, os comentários de Lima Barreto sobre raça, sobre classe social, sobre a mesquinhez de ambições dos minúsculos funcionários públicos, sobre a calhordice dos filhinhos-de-papai mimados e protegidos, sobre a tragédia da loucura que se abate sobre os indivíduos medianamente talentosos que seu ambiente não é capaz de assimilar, sobre a onipresença da cachaça (a “parati”) como analgésico moral, sobre a paisagem humana do subúrbio carioca, uma mistura de zona rural e cidade (a cidade vai até onde chegam o bonde e o trem).

Quase cem anos depois, Lima Barreto aparece menos como o analista distanciado que conta a desgraça alheia, e pode ser visto quase que dentro do próprio romance, como um dos seus personagens. A tragédia deles é a sua; ele os contempla através de uma parede de vidro, sem poder interferir no drama que relata.


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