(foto: Mike Wells)
Era de madrugada, com uma chuvinha fina, quando bateram com
força à minha porta, gritando. A Rainha
estava morrendo, e precisavam de mim. Pulei da cama, enfiei uma roupa às
pressas, peguei meus apetrechos e segui o anão uniformizado, com dragonas,
capacete e um sabre arrastando no chão.
Ele me acompanhou através do labirinto de becos e ruelas até a ladeira
onde, numa casinha de alvenaria modesta, a Rainha estava vivendo após o fim do
reino. Ele abriu e segurou para mim o portãozinho do jardim, seguimos a alameda
por entre as flores e entramos na casa onde havia luzes acesas e o murmúrio das
visitas.
Abriram passagem e eu sentei na borda da cama. Não a via há duas semanas, e assim que meu
olho bateu nela percebi que não duraria mais que algumas horas. Ela pegou minha mão nas suas, lembrou meu
nome, como sempre, contou alguma coisa antiga sobre minha família. O sacerdote veio, preparou o ritual, arrumou
todos em semicírculo. A Rainha apertou minha mão esquerda com força naquela
mãozinha esquelética de mulher com mais de cem anos. Com a mão direita apoiada em minha mesinha
portátil, fui escrevendo de uma em uma as Senhas, que o Sacerdote repassava aos
presentes, cada qual beijando e guardando a sua entre preces.
Ela lembrou-se de flores e de insetos dos jardins do palácio
onde foi menina, falou do seu medo de múmias, reproduziu um gemido de
engrenagem de moenda, enumerou famílias, espólios, currículos, recitou
versinhos libertinos e resumiu em dez frases uma complexa história de
aventuras. A cada trecho ouvido, eu meditava e depois escrevia a Senha, que era
rapidamente distribuída; e a cada momento eu percebia na minha mão esquerda a
mão dela diminuindo, um galhinho de mato que vai virando um graveto. À medida
que ela falava, ia sumindo. Por duas
vezes o Sacerdote aplicou o estetoscópio, e sinalizou para continuarmos.
Depois de quarenta Senhas ela já não tinha mais de vinte
centímetros de altura. A voz era precária mas nítida, e quando ela soava o quarto
ficava um túmulo. Ela ia falando e se
esvaindo, como se sacrificasse substância do corpo para que a voz se mantivesse
plena. Eu já segurava sua mãozinha entre as pontas do polegar e do indicador,
mas a sentia ainda morna, ainda pulsando, e fantasiava que se eu não a estivesse
tocando ela já teria sumido.
meu prezado bráulio.
ResponderExcluirmais do que magnífico, este foi um dos mais belos e poéticos textos que já li.
M.
de onde saiu essa história? teria sido a partir da foto q ilustra o conto?
ResponderExcluirObrigado, Marco!
ResponderExcluirKadu, a história surgiu pronta, e foi feita em quinze minutos. A ideia da foto para ilustrá-la veio depois, mas como eu já conhecia a foto (tem até uma capa do Dead Kennedys que meu filho tinha me mostrado) o inconsciente pode ter ajudado.
ResponderExcluir