Quando estou muito cheio de problemas, tenho um remédio que
é tiro e queda. Começo a me preocupar com os problemas dos outros. Antigamente
eu escolhia problemas distantes, como a fome na África e a questão
israelense-palestina, mas tenho o cacoete literário de entrar na pele dos
personagens, e aí começava a perder o sono de novo. Tudo ficava demasiado real.
O que fazer? Fechar o foco, pensei; pensar num problemazinho pequenininho,
focado em plano-de-detalhe, sem nenhuma escala catastrófica para me aperrear. E
de preferência (volta aqui, agora de um jeito positivo, o cacoete literário) um
problema que não existe. Um problema inventado por mim mesmo.
Foi o que fiz ainda agora, indo ao supermercado, com a
cabeça latejando de preocupações variadas, insolúveis; como dizia Drummond:
“nenhum problema resolvido, sequer colocado.”
Já com o carrinho pela metade, parei diante do balcão de tangerinas. Não
há nada melhor, para o calor do Rio, do que tangerina gelada. Peguei algumas, vi uma bem bonita, madura, e
quando fui colocá-la no saquinho vi, do lado oposto ao que eu tinha olhado, uma
mancha escura do tamanho de uma uva. Mancha de má aparência, meio afundada, se
desmanchando. Um ponto focal de deterioração. Coloquei a tangerina de volta,
mas nesse instante as outras (minha mente é assim, tipo desenho animado)
começaram a se manifestar.
“Ele não te quis! Ele não te quis!” gargalhavam em uníssono
para a desprestigiada, em tom escarninho. “Tu é feia!” Percebi que no mundo das tangerinas existe
também aquela planilha de critérios que nos ajudam a distinguir entre Angela
Merkel e Audrey Hepburn. E me insurgi contra aquele erro de avaliação. “Nada
disso,” pensei na direção delas, “ela é bonita, só está com uma mancha
esquisita na... bem, na circunferência.” “Rá rá rá rá!” explodiram as outras, e
o bullying recrudesceu. A tangerina em questão nem me olhava. Rejeitada,
humilhada, ficou ali exposta à galhofa alheia.
Gosto da sua escrita, interdiscursividade com o texto machadiano Um apólogo, muito bom!!!
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