quinta-feira, 24 de outubro de 2013

3326) Memórias de um Mágico (25.10.2013)






“A mão é mais rápida do que o olho,” disse ele. Ergueu as mãos de dedos longos; mostrou as palmas, vazias, depois o dorso delas, com veias grossas e manchas marrons. Começou a encher o cachimbo, enquanto eu me servia de outra taça de vinho. Ele continuou: “Quando eu tinha nove anos, estava com minha família num restaurante de Marselha. Havia um copo vazio perto da borda da mesa, e ao gesticular eu bati nele com a mão, assim.”  Fez um gesto rápido, como de quem esbofeteia uma criança.  Soltou uma baforada e sorriu. “Peguei o copo antes que tocasse o chão. Ninguém queria acreditar no que tinha visto.”  Eu sorri e disse: “Foi verdade ou foi truque?”  “Verdade,” disse ele, “porque sempre fui rápido. Sabe por quê? Porque fazia antes de pensar. O olho via, a mão agia.  Esperar pelo cérebro seria fatal.”

Corri os olhos pelo salão com paredes cobertas de cartazes, onde o rosto e o nome dele apareciam numa variedade de cores, formas, fotos, desenhos, em mais línguas do que eu era capaz de decifrar. “Mas,” disse ele, “voltando ao que falamos há pouco, não há muita diferença entre tirar da cartola um coelho ou um pássaro. Os dois são difíceis. Sempre é difícil lidar com seres vivos. O resto... pufff!” Com a interjeição, tirou do fornilho aceso do cachimbo um filete de água cristalina, trouxe-o pendurado entre as pontas do indicador e do polegar, como uma fita, e o fez enrodilhar-se dentro de um copo vazio. Estendeu-me. Bebi sem hesitar. Era água limpa, fresca.

“Fogo, água, terra, ar, substâncias comuns ao nosso mundo como pano, papel, madeira ou metal... Tudo isto é fácil.” Ele cerrou os dedos, e ao abri-los tinha na palma da mão uma moeda de cobre com meu nome e meu rosto gravados. (É uma das lembranças dele que guardo até hoje.) “Pode publicar isto na sua revista,” continuou, “porque seus leitores o olharão como meu pai me olhou naquela noite”. Tossiu, deu um gole de vinho, voltou a fumar.

Prosseguiu: “Há pessoas capazes de ler pensamentos, de levitar, de mover coisas com a mente... Eu não. Eu produzo coisas que segundos atrás não existiam, mas tenho que usar uma cartola, um lenço colorido, um biombo – senão, ninguém acreditará no que está vendo.” Tirou da taça de vinho um rei de ouros gotejante, amassou-o, entregou-me uma chave idêntica à do meu carro. “Para fazer mágica, é preciso contar com a expectativa do público pela mentira, pelo truque. Se eles descobrissem que é tudo verdade, apedrejariam o mágico e incendiariam o teatro. É melhor que acreditem numa verdade mais confortável – por exemplo: que a mão é mais rápida do que o olho”. Estendeu-me a mão aberta: na palma dela um olho se abriu, e piscou para mim.


4 comentários:

  1. É minha dose de literatura diária.Eu estou lendo agora teologia dogmática.Ontem conheci um ateu.Nos demos muito bem.

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  2. Ducaraio, Braulio! (Vou repassar pros meus companheiros do ALEM - Academia e Laboratório de Efeitos Mágicos, aqui de POA - do qual sou um dos fundadores em 1981, acredite se quiser! Abração, tudo de bão.)

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  3. Kadu: acabei de fazer isso. "Histórias Para Lembrar Dormindo" (Casa da Palavra, 2013).

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