sábado, 19 de outubro de 2013

3321) A ex-música (19.10.2013)




A ex-música é aquela que a gente compôs um dia cheio de inspiração, cantou com entusiasmo, mas com o passar do tempo foi ficando datada, foi ficando ultrapassada, e depois de certa altura não nos retratava mais. 

Começou a ficar estranha com a passagem do tempo. Começou a perder o jeito, a soar de uma maneira incômoda. Era uma música tão legal, e agora, sem mudar um verso, ficou parecendo um monstrengo.

De que maneira uma música se torna ex-música? Afinal, ela continua existindo! Não foi deletada do Hd do mundo, ainda toca no rádio se foi gravada, ou é pedida pelos amigos quando não foi. Continua igual ao que era antes. O que mudou foi a reação que desperta no autor. Algo que ela fazia vibrar não vibra mais. Algo que ela continha foi esvaziado por uma fresta invisível e sumiu para sempre. 

A música não mudou, mas a pessoa que a fez não é mais a mesma, é, agora, uma pessoa que não gosta dela.

Em geral isso acontece porque o autor acha que evoluiu, e que a ex-música denuncia o quanto era incompetente e imaturo naquela época. Pode ser pelo uso de gírias que hoje estão datadas e constrangedoras, soando grotescas aos ouvidos contemporâneos. Pode ser a expressão de sentimentos líricos ou de posições ideológicas que o autor preferiria esquecer. Pode ser porque denuncia o quanto eram quadradões nossos acordes, previsíveis as nossas rimas. Pode ser porque hoje ficam evidentes as nossas intenções imitativas em relação aos sucessos daquele tempo. 

Tanto faz. Cada caso é um caso, mas certos casos são casos perdidos. Uma ex-música é um caso que chegou ao fim, que foi cortado rente ou que foi deixado para definhar devagarinho no silêncio e na distância.

A ex-música, porém, se recusa a morrer. Está viva nos outros, mesmo que defunta no ex-dono. É preciso, portanto, aceitar sua condição morta-viva, sobrevivente póstuma de si mesma, e recebê-la bem quando ela se aproxima, cantada por um amigo incauto, tocada numa festa, recordada numa entrevista ou numa roda de violão. 

Melhor não revelar a ninguém a condição em que ela se encontra dentro de nós, inclusive porque tocar nesse assunto em público seria entreabrir um sarcófago cujo conteúdo é melhor deixar quieto. Melhor tratá-la como uma música qualquer, tocá-la quando pedirem, cantar sem sabotagens, demonstrar naturalidade. Permitir regravações, porque afinal se um dia ela nos disse alguma coisa talvez esteja a dizê-la agora a outros, e quem é um simples autor para governar esses diálogos? 

A gente deixa de ser dono daquilo que mostra aos outros. Uma ex-música é algo que foi embora da gente para sempre e se exilou na memória alheia. Que fique por lá, e que seja feliz.







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