(D. F. Wallace, por Charlie Powell)
A vida é irredutível a palavras, como sabe quem já
experimentou uma e quem utiliza as outras, mas é essa mesma incompatibilidade
de essência que torna indispensável a tentativa.
Verbalizar não produz uma
síntese da experiência vivida, mas uma mera antítese a ela, uma expansão dela,
a criação de um simulacro em tão alto grau de alteridade e de abstração que o
simples ato de produzi-lo ou de absorvê-lo (ou seja, o ato de escrever e o ato
de ler) turbina a intensidade da experiência vital, e chegamos a nos perguntar
se faz sentido passar pela vida inteira sem experimentar esse simulacro que não
a explica nem substitui, mas talvez a justifique.
No seu famoso ensaio “Uma coisa supostamente divertida
que eu nunca mais vou fazer” (em Ficando Longe do Fato de Já Estar Meio Que
Longe de Tudo, Cia. Das Letras, 2012), David Foster Wallace assim descreve o
cheiro de detergente no banheiro de um navio de luxo:
“...um desinfetante
norueguês estranho, mas nada mau, cujo perfume se parece com o cheiro que
existiria se alguém, que conhecesse a exata composição organoquímica de um limão
mas nunca tivesse de fato cheirado um limão, tentasse sintetizar o perfume de um
limão.”
A escrita é um epifenômeno (um fenômeno secundário, consequência de um
fenômeno principal) que na tentativa de evocar o fenômeno principal desenvolve
estruturas expressivas de tal complexidade que adquire vida própria e essência
independente, tornando-se tão ou mais digno de atenção quanto o fenômeno que, a
princípio, tentava reproduzir ou sintetizar.
Wallace falou em limão mas a imagem que me ocorre é a de
um caju. O caju não é uma fruta. O fruto do cajueiro é na verdade a castanha
(que para nós é somente um caroço avantajado, como o do abacate ou o do
pêssego); o caju é apenas “um pedúnculo carnoso”, que desenvolveu forma, cor,
aroma, textura, massa esponjosa, cordames tenros, sucos adstringentes e doces,
e, como uma atriz tarimbada contracenando com uma estrela mais jovem, dá um
jeito coreográfico de colocá-la de costas para a platéia, ou sob luz
desfavorável, invertendo assim o balanço hierárquico e tomando as rédeas da
cena.
Não desmerecemos o fenômeno principal (castanhas assadas são sempre uma
delícia), mas igualmente há que se tirar o chapéu para a exuberância ontológica
desse mero coadjuvante que, por méritos próprios, consegue redefinir o Universo
em seus próprios termos.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirNunca parei pra pensar na "exuberância ontológica" dos cajus (hehehe, adorei a expressão). É uma analogia inusitada, mas bem expressiva a respeito da arte como epifenômeno. Muitas vezes, consigo compreender - ou pelo menos aceitar melhor - a causa principal (a Vida) por meio do efeito (a Arte).
ResponderExcluirNunca tinha ouvido falar no ensaio mencionado, de D. F. Wallace, mas grato pela indicação.
Um abraço.