terça-feira, 21 de maio de 2013

3191) Pobre de novela (21.5.2013)





O Realismo Socialista era uma literatura que se propunha a reproduzir “personagens típicos em situações típicas”. Para evitar o individualismo burguês (a ficção centrada em heróis individuais) e a alienação das vanguardas (cujas obras falavam de um mundo que só o autor entendia) o Realismo Socialista pretendia ser um retrato cru e sincero da sociedade. Queria mostrar “a vida como ela é”. Ora, a vida é mais complexa do que qualquer fórmula. O Realismo Socialista produzia tipos e lhes dava nomes; os tipos nunca pareciam com gente de verdade, e sim com caricaturas ideológicas.

Lembro sempre disto quando vejo essas novelas de TV onde os autores, geralmente sujeitos que ganham 100 mil reais por mês e moram num condomínio da Barra da Tijuca, tentam reproduzir o modo de ser, de vestir, de falar e de agir dos pobres, ou, mais precisamente, da classe C+, C-, D+ e demais tabulações alfabéticas baseadas no número de eletrodomésticos existente em cada lar.

A obrigação de mostrar como se comportam os pobres produz uma novela em que o pobre tem que ser um Símbolo de Pobre em cada diálogo, em cada gesto, em cada peça de roupa. Tudo tem que convergir para essa idéia. Se Fulano pertence ao “núcleo pobre” da novela, tem que usar somente palavras e expressões de pobre, ter idéias de pobre, emoções de pobre. Cada personagem vira um cabide de atributos. Não se comporta como uma pessoa, e sim como um aglomerado de clichês que de tão redundantes acabam sendo contraditórios, como se aquela pessoa tivesse a idéia fixa de ser pobre 24 horas por dia.

Não há dois pobres iguais. Os ricos tendem a ser parecidos, porque têm medo de ser considerados pobres, então se imitam uns aos outros o tempo todo. (Sim, sei que não é assim; estou dizendo isso apenas para incomodar certas figuras.) Pobre de Novela tem que ser típico, viver em situações sempre típicas, beber cachaça, pender cigarro na boca, mostrar a sandália vagabunda à câmara, e olhar ansioso para a platéia: “E aí, chefia? Sacou quem sou eu?” Qualquer casinha de subúrbio onde aquela novela é assistida tem mais complexidade sociológica do que todas as novelas juntas. Um pobre (ou um rico) não é um conceito, é o produto sempre em-processo de mil fatores aleatórios. Tatuá-los assim com um adjetivo é uma maneira negligente de ignorar o que têm de único e trabalhoso. A novela formata todos numa formulazinha que pode ser repassada à equipe. A intenção é não correr o risco de que a novela se torne algo como a vida: imprevisível, com dinâmica própria, podendo a todo instante fazer algo que não estava nos planos de quem a administra.




3 comentários:

  1. Da janela de minha casa passam vários personagens, desses uma que eu mais gosto é de Maria, anda rápido, acorda cedo e volta tarde.

    A sua marcha diária promoveria sucesso a qualquer um que não fosse pobre, antes fosse “O operário no mar”, mas Maria é um ser que Ainda Existe, Maria é Ainda Maria. Não esperava a ver tão cedo. Tinha o filho, o Simão, dizia:

    “ Olha lá o Simão, é nome forte como Abrão”

    Entonava orgulhosa nome do filho. E Simão corria, e Simão ecoava nas esquinas da rua.

    “ Simão é nome bravio, falou o pastor.”

    Ainda Maria olhava ao filho, como ela tantos outros: o pastor, o policial, o traficante, a estatística, a novela, a música ácida. Ainda Maria não é uma mulher, é um soldado orgulhoso, quando olha para bandeira flamejante, após derrotar primeiro a si, para depois o inimigo. Ainda Maria carrega a mesma sensação de esvaziamento, de pertencer não a si mesmo, mas a um grupo de honra, de princípios, aquela certeza que se enfia na cabeça do soldado: Haverá um paraíso.

    O mesmo soldado que irá enterrar a perna em uma mina no campo conhecido, o carro do exército poderia buscá-la por outro caminho, mas a nação precisa de tempo, precisa completar a missão: Soldado! Sim, senhor... a perna vai embora, a nação fica.

    Ainda Maria sempre ocupada com ferros de passar desde os doze anos, não teve como saber que Simão, aos 10 anos, já era personagem de “ O meu guri” . E seu projeto, Maria, dele ser um adulto cristão, advogado, sabe do seu projeto? Desviado por um projétil do pastor, do policial, do traficante, da estatística, da novela e da música ácida.

    Estava lá estendido no chão. Ainda Maria, voe, você me escuta?

    Apenas um tiro, ele estava a dois metros de distância dela. Nunca saberemos se foi do pastor, do policial, do traficante, da estatística, da novela e da música ácida. Ainda Maria recebeu cultos em sua casa, visita de parentes, uma sobrinha para lhe ajudar a escovar os dentes e se pentear, notícias no jornal e rap. Pouco tempo depois, eu a vejo subir novamente em sua marcha diária.

    Ainda Maria não precisa saber como é a vida, Ainda Maria precisa saber da vida. Se a vida é um palco de teatro, radio, televisão, testemunhos; então Ainda Maria é a palmeira, bate o vento, Maria, volte ao centro. Erguem redes sobre a palmeira, a palmeira se curva e, Maria, volte ao centro, palmeiras não saem andando por ai, palmeiras não nadam, não falam, são paisagens pois não existem mais Marias, Maria não é um operário, é uma condição social.

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  2. Uma das coisas que eu acho estranha é a amplidão das salas nas casas dos "pobres-de-novela".

    Mas autores de novela de TV nunca seriam contratados se tentassem fazer algo fora do esquema habitual da teledramaturgia, não é mesmo?

    Aproveito para dizer que passei a acompanhar seu blog recentemente (soube dele através da sua coluna na revista Carta Fundamental). Mas já lia habitualmente sua participação nas revistas Língua Portuguesa e Metáfora.Gostei muito também do seu ensaio-prefácio para o livro Páginas de sombra: contos fantásticos brasileiros.

    Parabéns pelo ótimo trabalho.

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  3. Novela? Isso ainda existe?

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