domingo, 23 de dezembro de 2012

3064) Um besouro (23.12.2012)







Verão, calor sufocante. Minha rua tem prédios de um lado, e do outro uma encosta de pedra com mais de 50 metros, coberta de árvores, matagal, rochas enormes. Todo mundo que vem aqui acha uma beleza e suspira: “Como deve ser bom viver junto da Natureza!”.  

Esquecem os desatentos que a Natureza, do ponto de vista quantitativo, tem um bilhão de besouros para cada mico-leão-dourado ou boto-cor-de-rosa. No verão, quando a chapa esquenta, o mundo coleóptero se assanha. 

Vai ver que o verão é, também para eles, a época melhor para o acasalamento, a caça às fêmeas, o roçar obsceno das superfícies quitinosas. Por volta do meio-dia o ar em frente à janela do meu escritório fica parecendo o espaço aéreo de Pearl Harbor naquela manhã inesquecível.

Pois bem: logo agora um desses bichos emburacou zoando como um helicóptero, com um vibrar ensurdecedor de élitros, esbarrando nas estantes, arremetendo com insensatez contra a luz fluorescente (que vive sempre acesa, mesmo ao meio-dia – senão o terceira-idade aqui não enxerga o teclado) e investindo de encontro aos meus óculos, que o bicho-voador talvez imagine serem câmaras do FBI invadindo sua privacidade insetóide.

Pois não é que o danado, tentando fugir pela janela, acaba se encalacrando do lado direito, entre as duas lâminas de vidro, uma delas corrediça?!  Fico vingado ao vê-lo naquela situação kafkeana, preso entre dois campos-de-força invisíveis (deve ser assim que ele interpreta os vidros – parece um besouro jovem, que lê ficção científica). 

Mas ele esperneia tanto, se debate tanto, que acabo me condoendo. Com uma régua cuidadosamente inserida, empurro-o para fora da armadilha, apago a fluorescente (para que o idiota entenda que o sol está lá fora) e vejo-o partir, rumo ao Bar dos Besouros, para se vangloriar de sua aventura.

Por que fiz isto? Acho que fiz por pena dele, solidariedade entre viventes, e porque, de certa forma, “um besouro também é um ser humano”. Eu tenho o dom da empatia, de me colocar no lugar dos outros (por isso sou péssimo para negociar contratos – sempre fico com pena da gravadora, da editora, da rede de TV, etc.). 

Salvei o besouro para que ele fosse feliz, mesmo sabendo que a felicidade dele não aumenta em nada o meu pecúlio. Ou talvez aumente, sim.  Rendeu-me uma crônica, como a borboleta de Brás Cubas rendeu a Machado um capítulo.

O ser humano é uma ilha e é o mar que a cerca. Até o bem que fazemos aos outros nunca ultrapassa as fronteiras de nós mesmos. Nem um serial killer nem Madre Teresa de Calcutá chegam jamais a saber o mal ou o bem que fazem. 

Ah, que se dane. Fui no YouTube e fiquei vendo Cassia Eller cantar “Blackbird”.









4 comentários:

  1. Lembrei daquelas crônicas antigas dispostas na coleção "Para Gostar de Ler" (Ática). Muito bom esse texto!

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  2. Beleza d crônica;
    E eu quase xereta, arrogante e hereticamente propondo mais isolamentos como Tela, Ar condicionado...
    Mas calo-me diante do som das pás do ventilador aqui

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  3. Digno de um Rubem Braga!

    Parabéns, BT!

    Adiós!
    kdmd

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  4. Ultrapassa sim, mestre. Ultrapassa sim.

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