Julio Cortázar é sempre incluído no realismo mágico
latino-americano, em parte por sua evidente identificação com o gênero, mas sua
obra vai muito além disso. Muitos livros seus contêm mais contos policiais
(histórias de crime) do que os contos fantásticos ou de terror que seu leitor
casual espera encontrar. Em “Apocalipse em Solentiname” (no livro Alguém que
anda por aí) Cortázar relata uma visita (real, em 1976) que fez à Costa Rica e
à Nicarágua. Ali, fazendo palestras,
sendo recebido por escritores e políticos, conhecendo vilas e cidades
diferentes, o personagem Julio Cortázar fotografa crianças, plantações,
artesanato. De volta a Paris, ele está no apartamento aguardando a chegada de
uma amiga, e resolve projetar os slides que tinha recebido do laboratório. Ao chegar nas fotos em Solentiname, ele tem
um susto. As casas que ele fotografou inteiras estão destruídas pelo fogo ou
por bombas; um menino, que ao ser fotografado brincava, agora está caído, com
uma bala na testa. Ele continua exibindo os slides, até o último: só
destruição.
Ele vai lá dentro, passa uma água fria no rosto. Nisso
chega a amiga, ele a deixa na sala e vai preparar um drinque. Ela pega o
controle e começa a projetar os slides. Ele não tem coragem de voltar à sala,
não quer ver aquilo de novo. Espera ela
terminar, e chega na sala com o drinque. Ela diz que viu todos os slides, e
completa: “Lindas as fotos... que povo tão alegre... que lugares bonitos!”.
Se fosse um conto sobre um personagem qualquer, seria um
conto banal, um conto em que oscilaríamos, conforme a “fórmula de Todorov”,
entre uma explicação fantástica e uma explicação corriqueira (“ele teve apenas
uma alucinação causada pela longa viagem e pelo jet-lag”). Mas Cortázar narra o conto, borgianamente, em
ultra-primeira-pessoa. O personagem é ele, a história é autobiográfica. No
início do conto ele diz que nas entrevistas coletivas respondeu perguntas que
sempre lhe são feitas: se não acha estranho viver em outro país, ou se não acha
que seu conto “Las babas del diablo” foi mal adaptado por Antonioni no filme
Blow up. Isto cria um piso mínimo de
realidade compartilhada entre o autor, o personagem e o leitor. Pelo fato de
ter sido justamente ao escritor Cortázar que sucedeu aquilo, ele não poderia
deixar de pensar no filme Blow up, também ele a história de um homem que
fotografa, e que ao revelar as fotografias percebe que fotografara um crime. O
que ele vê na foto não é mais o que ele imaginava estar vendo no momento do
clique. Ou, melhor dizendo: o que a gente vê numa foto é uma soma entre o
instante de fotografar e o instante de ver.
mestre Braulio, por gentileza me esclareça o que seria "borgianamente, em ultra-primeira-pessoa" estou mais perdido do cego em briga de foice
ResponderExcluirJoão: Jorge Luís Borges tem o hábito de escrever contos na primeira pessoa usando a si mesmo como personagem. Isso dá ao conto um ar de realismo (porque ele conta como se aquilo tivesse acontecido a ele próprio), em histórias que são claramente fantásticas. Eu chamo isso de "ultra-primeira-pessoa", pois é um "eu" (que conta a história) que se confunde com o "eu" de quem escreveu a história.
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