quarta-feira, 18 de abril de 2012

2847) No pé da página (18.4.2012)




Houve um tempo em que os livros eram copiados a mão nos mosteiros, em folhas de pergaminho. Obras importantes eram passadas a limpo por escribas hábeis, com caligrafias meticulosas que, vistas hoje, parecem ter sido impressas com tipos móveis, pela sua regularidade, harmonia e clareza. Ser escriba medieval exigia, além da caligrafia perfeita, boa cultura (para não cometer erros de grafia, e para poder eventualmente corrigir os erros da cópia que estava servindo de modelo), paciência e resistência física; porque em geral o escriba tinha que passar o dia inteiro debruçado sobre uma mesa, molhando a pena no tinteiro e desenhando letras após letras, hora após horas, dia após dia, ano após ano. Não era um serviço para qualquer um; e pelo menos uma grande obra literária, O Nome da Rosa de Umberto Eco, fez justiça a esses operários do saber, de um mundo que não existe mais.

O número da primavera da revista Lapham’s Quarterly (http://bit.ly/GDbCwa) traz uma matéria sobre o lado emocional desses artesãos anônimos: os comentários que eles deixavam anotados nas margens ou no cólofon das obras que copiavam. Ninguém é de ferro, não é mesmo? Esses monges de 800 anos atrás também não eram, e deixavam rabiscados, aqui e ali, seus pequenos protestos. “Estou com muito frio”, anota um. “Esta é uma página difícil dá muito trabalho para ser lida”, anota outro, lembrando-nos que estas cópias impecáveis eram muitas vezes feitas a partir de manuscritos muito velhos, danificados, com trechos arrancados ou ilegíveis. Alguns se queixam de pequenos problemas técnicos: “O pergaminho é peludo”, “A tinta é rala”, “Pergaminho novo, tinta rala, e não digo mais nada”. Alguns fazem uma autocrítica: “Esta página não foi escrita muito devagar”.

Mais comovente são os desabafos mais longos, que expressam bem o sentimento provocado por esse trabalho estafante: “Agora acabei tudo, pelo amor de Deus me deem algo para beber”. “São Patrick de Armagh, libertai-me do ofício de escrever”. “A escrita é um trabalho enfadonho. Ela enverga nossas costas, cansa nossa visão, torce o nosso ventre e as nossas ilhargas”. “Eu estava gelado enquanto escrevia, e o que não pude copiar aos raios do sol terminei à luz de velas”. “Assim como a visão do porto é bem vinda ao marinheiro, a da última linha o é para o escriba”. “Isto é tão triste! Oh, pequenino livro. Chegará um dia em que alguém lerá esta página e dirá: A mão que a escreveu não existe mais”. São pequenas queixas de homens anônimos que humanizam essas obras centenárias. É como encontrar na argamassa de uma catedral a marca de uma mão ou de dois joelhos humanos.

4 comentários:

  1. Magnífico o seu texto Braulio Tavares; e também justa a homenagem a esses operários e artistas da escrita. Esses comentários intimistas só vêm a reforçar que eles foram também os primeiros, conforme Roger Chartier a nos legar o ideia dos hiperlinks. Sem falar que as iluminuras que faziam (atualizadas nas iluminogravuras de Ariano Suassuna) são verdadeiras obras de arte.

    ResponderExcluir
  2. COMO SEMPRE MANDANDO BEM MEU CHAPA: "São pequenas queixas de homens anônimos que humanizam essas obras centenárias. É como encontrar na argamassa de uma catedral a marca de uma mão ou de dois joelhos humanos."

    QUANDO PAGUEI NA UNIVERSIDADE HISTÓRIA DA ESCRITA NUNCA HAVIA PENSADO NESSES RELATOS QUE VOCÊ TROUXE PARA NÓS HOJE, MUITO BOM MESMO.

    ResponderExcluir
  3. Várias vezes cogitei fazer uma coletânea das suas linhas finais, em cada artigo. Na maioria deles, vc finaliza com uma filigrana, como a deste texto. Apêndices assim nos fisgam para o hipotético artigo vindouro: como o nosso escriba irá concluir o último parágrafo? Palmas pros seus admiráveis arremates, meu amigo. Abração.

    ResponderExcluir
  4. Lembrei daqueles achados numa das cúpulas do Congresso alguns anos atrás, os operários deixando suas marcas daqueles dias para alguém em algum lugar do futuro...

    ResponderExcluir