Artigos de Braulio Tavares em sua coluna diária no "Jornal da Paraíba" (Campina Grande-PB), desde o 0001 (23 de março de 2003) até o 4098 (10 de abril de 2016). Do 4099 em diante, os textos estão sendo publicados apenas neste blog, devido ao fim da publicação do jornal impresso.
domingo, 23 de outubro de 2011
2695) O pintor de portas (23.10.2011)
Surgiu em nossa cidade um pintor especializado em portas. Cobrava muito caro, mas mesmo assim os candidatos a cliente faziam fila. Deixavam no escritório do “marchand” um documento contendo descrição e foto dos membros da família, e um texto de vinte linhas dizendo por que motivo queriam o quadro. Quando o artista escolhia a família, ela tinha que hospedá-lo durante o tempo necessário para que ele se familiarizasse com a casa, escolhesse o aposento e a parede, e pintasse ali a porta.
Na casa do advogado Hrabel ele pintou no corredor uma porta feita de água verde do mar, um retângulo trêmulo e salgado onde se via às vezes passar como uma flecha um peixe arisco, ou flutuar uma água-viva.
Na casa da família Yssahid, pintou na sala de jantar uma porta de carvalho maciço, coberto de musgo, com uma pesada aldraba de metal; mas suspensa a um palmo acima do piso, e numa inclinação de 30 graus. Era possível cerrar os dedos em torno da aldraba.
No apartamento da viúva Tenmory, ele demorou quase dez dias para encontrar o lugar adequado, e foi preciso desmontar um armário para que naquela parede descolorida e arranhada ele produzisse uma porta esférica, que preenchia totalmente a abertura onde estava encaixada. Era possível usar as mãos para fazê-la girar, e cada movimento revelava formas e cores diferentes, distribuídas na superfície daquele globo de madeira; até mesmo palavras.
Seus sucessos se acumulavam. A porta vazia que pintou para a família Blinemuth; a porta narrativa que até hoje desconcerta os visitantes do mosteiro copta; as duas portas gêmeas e reversas no banheiro do usineiro Fargas. Para ter em casas essas obras merecedoras de contemplação e hipóteses valia a pena (segundo os clientes) suportar a presença do artista, cujas venetas pareciam mudar de acordo com a moradia onde se instalava. Soturno e arredio numa, impudente e ofensivo em outra; nesta, passava o dia deitado no tapete, bebendo vinho em silêncio e coçando os pés; naquela, devorava a biblioteca do dono, enquanto os pincéis e as tintas secavam, inúteis, sobre uma mesa de jantar de onde ninguém ousava aproximar-se. (Na minha casa, estranhamente, não demorou mais que meia hora, para executar às pressas uma porta no muro de pedra que dá para a rua, uma porta que só pode ser vista pelo lado de dentro.)
Partiu um dia, após embolsar seu último pagamento. Deixou atrás de si polêmicas, contradições acaloradas, residências a cuja entrada se formam, ainda hoje, filas de turistas empunhando guias explicativos e câmaras de filmar; e essa coleção de passagens que não levam a lugar nenhum.
Quando vão fazer um documentário? O roteiro está pronto, a platéia está ansiosa!
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