Artigos de Braulio Tavares em sua coluna diária no "Jornal da Paraíba" (Campina Grande-PB), desde o 0001 (23 de março de 2003) até o 4098 (10 de abril de 2016). Do 4099 em diante, os textos estão sendo publicados apenas neste blog, devido ao fim da publicação do jornal impresso.
sexta-feira, 5 de agosto de 2011
2627) O relógio do gladiador (5.8.2011)
O relógio no pulso do gladiador romano, ou do cowboy, ou do cortesão do século 18, é apenas um exemplo pitoresco, entre muitos, do que chamamos “erro de continuidade”. Na verdade, os erros de continuidade se referem a outros erros, bem específicos, que têm a ver com a continuidade das informações apresentadas na tela. Os personagens que participam de uma cena precisam manter a mesma aparência, mesmo que os planos que compõem a cena tenham sido filmados, como muitas vezes acontece, com dias ou semanas de intervalo. Quando ocorre um erro desses, vemos dois personagens conversando numa mesa de bar e a cada vez que a câmara muda de ângulo os copos estão em posição diferente, mais cheios, mais vazios, ou o cabelo que estava penteado está revolto, ou vice-versa, ou o ator que estava de camisa azul-escura está de camisa preta.
O relógio no braço no gladiador, portanto, não é uma falha na continuidade de exibição de um detalhe legítimo, mas a presença indesejada de um elemento que não pertence à cena e entrou ali por descuido. Perguntaram a Akira Kurosawa por que motivo as cenas da batalha num dos seus filmes eram mostradas à distância com a câmara parada, sem aqueles movimentos panorâmicos que os diretores tanto apreciam. Ele disse que a única locação disponível para a batalha tinha de um lado os arranha-céus de uma cidade próxima e do outro um poço de petróleo: a câmara foi colocada na única posição possível entre essas duas coisas que não poderiam aparecer, já que o filme se passava na Idade Média.
Muito bem. Corte rápido para 2011, estou dando um entrevista à TV, na sala da minha casa. O cara vem com um microfonezinho de lapela, enfia por entre os botões da minha camisa, prende na gola com fita isolante preta. A camisa é clara. Ele pergunta se eu não tenho uma camisa preta. Pergunto por que. Ele diz que com a camisa preta seria melhor, pois o microfone não apareceria. Pergunto: Por que motivo o microfone não pode aparecer? Todo mundo não sabe que usamos microfones numa gravação? O entrevistador vem em socorro dele, e diz que o microfone não pode aparecer, porque fica feio, fica estranho, e “microfone aparecendo é como o relógio no braço do gladiador”.
Isso é uma amostra de como certos preceitos técnicos surgem cobertos de razão mas, ao passarem adiante de geração em geração, sem uma explicação devida, acabam se transformando num dogma que todo mundo aceita sem fazer a pergunta chave: “Por que motivo temos que fazer sempre assim?”. As pessoas têm um trabalho danado para esconder desnecessariamente um microfone de lapela que só é visível se o espectador estiver procurando por ele. Há um microfone que não pode aparecer: é aquele “girafa” que fica pendendo do alto sobre os atores, em filme de ficção, e que às vezes é pêgo pela câmara em pleno monólogo de Hamlet. Filme de ficção não pode mostrar o microfone, mas o pessoal parte disso para proibir que ele apareça numa mera entrevista.
No início do filme "O Espelho", de Andrei Tarkovsky, aparece muito claramente na parede a sombra do microfone que você chama de "girafa". Como não aceito que um cineasta do calibre de Tarkovsky deixasse passar um erro destes, tento mentalizar que foi um artifício proposital para mostrar... bem... alguma coisa do tipo "a irrealidade da arte como reflexo da memória". Ou vice-versa.
ResponderExcluirFaz sentido? Não? Então daria um boa tese acadêmica.