quarta-feira, 3 de agosto de 2011

2625) Fantasia Compensatória (3.8.2011)


Walter Mitty é um piloto de caça na II Guerra Mundial, envolvido numa tremenda batalha contra os caças japoneses em disputa de uma ilha no Pacífico, fazendo manobras arriscadíssimas para evitar as baterias antiaéreas do inimigo, metralhando os aviões nipônicos que passam à sua frente. 

De súbito, a voz da esposa soa no banco ao lado: 

– Walter, você está dirigindo de uma maneira muito imprudente! Quase bateu naquele ônibus!

– Desculpe, querida, – balbucia ele, e reduz a velocidade do fusquinha. 

O conto clássico de James Thurber, “The Secret Life of Walter Mitty” (1939) descreve um personagem tímido, desajeitado, casado com uma mulher truculenta e ranzinza. Walter vive uma série de fantasias com os olhos abertos, sempre imaginando que é um herói de guerra, um valentão, um cirurgião com nervos de aço, etc. 

Aliás, o diálogo acima foi inventado por mim, não sei se tem na história original. Não importa. Mitty tornou-se um tipo universal. Woody Allen que o diga. A atividade mental de Mitty vive num “loop” constante do que eu chamo de fantasia compensatória, aquele devaneio (geralmente inocente e inofensivo) que todos nós praticamos. Muitas fantasias têm caráter erótico: estou numa festa, vejo uma garota, levo para a varanda, ficamos por ali, pegamos o carro, vamos para a casa dela... E tudo acontece exatamente como gostaríamos que acontecesse, o que faz da Fantasia Compensatória um sub-ramo da literatura utópica. 

Ou então estou jogando pelo Treze, decisão da Copa do Brasil no Maracanã, zero a zero com o Fluminense, já nos acréscimos a bola é alçada na área, aplico uma bicicleta sensacional e entro para a História. Ou então... 

Não, é desnecessário prolongar a lista. A Fantasia Compensatória mobiliza nossa libido, nossa imaginação, nossa capacidade fabulatória. Alimenta-se de um desejo emocional profundo cuja fome pode ser enganada momentaneamente com o biscoito-de-polvilho da fantasia. 

Diz-se que a gente fica doido quando não distingue mais entre a fantasia e a realidade. Ou, como dizia Philip K. Dick (notório fantasiador) a realidade é aquela parte que quando você deixa de acreditar nela ela não desaparece. 

Isto conduz à interessante questão: no filme Uma Mente Brilhante, o personagem de John Nash (Russell Crowe) descobre que é esquizofrênico e que alguns amigos seus são imaginários. Ele agora sabe disso; os amigos continuam aparecendo, insistindo, e ele dizendo “vão embora, vocês não existem!”. 

Uma das fantasias de Nash é que foi contratado pelo Serviço Secreto dos EUA para decifrar mensagens secretas publicadas em código através de notícias de jornal, algo que só pode ser decifrado através de cálculos logarítmicos complicadíssimos. Nash foi um Walter Mitty mórbido, tentando compensar sua timidez e desajustamento com uma fantasia de espionagem, e ela cresceu a tal ponto que até o fim da vida ele só conseguiu livrar-se dela parcialmente.




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