Artigos de Braulio Tavares em sua coluna diária no "Jornal da Paraíba" (Campina Grande-PB), desde o 0001 (23 de março de 2003) até o 4098 (10 de abril de 2016). Do 4099 em diante, os textos estão sendo publicados apenas neste blog, devido ao fim da publicação do jornal impresso.
domingo, 24 de julho de 2011
2617) Passou do ponto (24.7.2011)
São essas coisas que acontecem na vida das pessoas, elas se veem de repente numa situação que é um paraíso imprevisto, um paraíso não-sonhado, que aparece não como a conquista (enfim!) de um objetivo, mas como algo que cai já pronto em nosso colo, objetivo e conquista embrulhados juntos no mesmo celofane. De repente estava tudo tão bom, o ônibus agradável, o ar condicionado funcionando, a poltrona confortabilíssima e reclinável em três ângulos, as janelas amplas e transparentes, a companhia esfuziante dos outros passageiros... Estar cruzando a cidade (babilônica e luminosa) naquele ônibus tornou-se de repente não um meio mas um fim em si, e era um tal clima de festa, uma tal variedade de companhias, de conversas, de risadas, de confidências, de conspirações benignas e de planos para o futuro que parecia não existir nada mais além daquele espaço fechado em movimento. A cidade (sensual e festiva) passava lá fora como um loop de imagens em computação gráfica, espaço bidimensional que, se a gente se contentasse em vê-lo passar, cumpria plenamente a função. A vida verdadeira era ali dentro, tudo acontecia naquele corredor largo entre as poltronas, onde era possível caminhar em filas de mão e contra-mão, e havia frigobar em esquema de boca-livre (ou quem sabe incluído na passagem), televisõezinhas ejetáveis no teto, canais de música com fones de ouvido e menu de trinta opções... O ônibus em que iam conhecer o mundo transformou-se no mundo, transformou-se no único lugar a que ele dava atenção, no único lugar que ele via e ouvia. E ele passou do ponto.
Saber ele sabia, que aquele ônibus não fazia o trajeto circular dos ônibus urbanos, era um ônibus com rota em linha reta, que partira de um A e chegaria hipoteticamente a um Z, e que nesse percurso havia um local bem específico que ele escolheria para descer. Havia um local que ele reconheceria, por todas as pistas que lhe seriam fornecidas, principalmente pelos outros passageiros, cuja conversa, por mais variada e ininterrupta, circulava sempre em torno desse tema, dessa idéia fixa: do lugar onde cada um estava pensando em descer, e por que motivo ali e não em outro local, e de que maneira seriam capazes, cada um, de reconhecer o próprio local de descida, se presumirmos que todos estavam fazendo aquele trajeto pela primeira (e única) vez, e tudo que sabiam sobre o espaço a ser percorrido eram suas próprias expectativas e as expectativas, suposições, lendas e imaginações dos outros a bordo. Todos tinham sua teoria, suas anotações; ele também. E a discussão era tão animada, tão enriquecedora e divertida, tão objetivo-final-da-coisa-em-si, que, punge-me dizê-lo, quando ele olhou já era tarde, as casas iam rareando, a cidade (feérica e monumental) cedera lugar a uma periferia de matagais e ruínas, um deserto soturno de charnecas; e de gelada constatação. O ônibus seguiu. Seguiu sempre em frente. E ele não precisou mais descer, é claro. Ele passou do ponto.
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