Artigos de Braulio Tavares em sua coluna diária no "Jornal da Paraíba" (Campina Grande-PB), desde o 0001 (23 de março de 2003) até o 4098 (10 de abril de 2016). Do 4099 em diante, os textos estão sendo publicados apenas neste blog, devido ao fim da publicação do jornal impresso.
domingo, 20 de março de 2011
2509) A Seita das Carrascas (20.3.2011)
Suponhamos que num reino medieval foi instituída uma pena de morte diferente. Ali, os executores públicos tinham sido uma casta abominada, sinônimo de crueldade e opróbrio. O fato de serem recrutados entre ex-guerreiros e ex-mercenários lhes tisnava a reputação. A Rainha teve a ideia de convocar, entre as sacerdotisas da corte, um contingente de noviças para assumir essas funções. Deu-lhes treinamento de artes marciais e de esgrima, além de cursos em jurisprudência e ética. O intuito da soberana era que a pena de morte deixasse de ser uma execução brutal e se transformasse num processo educativo, em que o condenado tivesse uma última chance de elevação espiritual.
Proferida a sentença, era o condenado transferido para uma cela onde, sob forte vigilância, deveria ficar preso durante os últimos meses antes da execução. A Irmandade escolhia então a Executora a quem caberia guiá-lo durante seu percurso final. Seu primeiro papel seria o de Confessora, quando, em visitas diárias, ajudaria o preso a narrar sua história e a se libertar do seu fardo de culpas. Em seguida, assumiria a função de Educadora, explicando-lhe a letra e espírito das leis, a natureza dos seus crimes, a necessidade de expiá-los. Em seguida, quando o condenado fosse julgado apto, ela seria sua Orientadora, sugerindo-lhe normas de conduta moral a serem adotadas em sua próxima reencarnação. E no dia aprazado ela seria enfim a Executora. Diante da congregação reunida, aos primeiros raios do sol no amanhecer, ele subiria ao patíbulo, pousaria a cabeça sobre o cepo e ela, trajando as vestes rituais, ergueria com as duas mãos a pesada lâmina e libertaria sua alma.
A plebe, que mal compreendia as nuances de funções tão diferenciadas, as chamava de Carrascas, e afastava-se à sua passagem quando elas, sempre em dupla, cruzavam a praça ou percorriam o mercado, trajando véus de musselina por sobre a cota de malha que lhes protegia o torso, e conduzindo espadas leves e mortais à cinta. Eram muitas as histórias que se contavam sobre o que ocorria por trás dos muros da prisão. Histórias de como, além de instrutoras espirituais, elas também serviam aos condenados como objetos de prazer, para o castigo adicional de lembrar-lhes os deleites que estavam a ponto de perder para sempre. Histórias de como criminosos empedernidos eram manietados à cadeira durante as visitas, sendo obrigados a ouvi-las e vê-las durante intermináveis sessões. Histórias de paixões violentas surgidas entre uma Executora e um Condenado, e que, descobertas a tempo, resultaram na execução simultânea de ambos. Histórias de como homens transgrediam propositalmente as leis para terem direito a uma Carrasca. Histórias de como esposas entravam para a Ordem e maridos tornavam-se criminosos, a fim de se reencontrarem num outro patamar de direitos e deveres, no qual o fio da espada lhes vedava o direito à mentira, à pusilanimidade, à tergiversação.
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