Artigos de Braulio Tavares em sua coluna diária no "Jornal da Paraíba" (Campina Grande-PB), desde o 0001 (23 de março de 2003) até o 4098 (10 de abril de 2016). Do 4099 em diante, os textos estão sendo publicados apenas neste blog, devido ao fim da publicação do jornal impresso.
sábado, 12 de fevereiro de 2011
2478) Drummond: o poema ready-made (12.2.2011)
(Marcel Duchamp, foto de Julian Wasser)
O poema mais polêmico do livro de estréia de Carlos Drummond, Alguma Poesia, foi o famoso “No meio do caminho”, o qual produziu respostas tão numerosas e variadas na imprensa que o próprio Drummond, anos depois, se deu o trabalho de coletar todas elas num livro hoje raro (Uma pedra no meio do caminho – Biografia de um poema, Editora do Autor, 1967) . É bem verdade que a repetição monocórdia das mesmas frases (“No meio do caminho tinha uma pedra / tinha uma pedra no meio do caminho...”) desconcerta e irrita os leitores de sonetos parnasianos; mas quem tiver boa vontade deve reconhecer que o poema descreve uma situação de perplexidade existencial e tenta reproduzi-la através dessas repetições. O leitor pode até dizer que aquilo “não tem poesia”, como muitos disseram; mas ele deve admitir que existe ali um mínimo de presença autoral, existe a intenção de dizer algo com os recursos da literatura.
Passemos agora a outro poema do mesmo livro, intitulado “Sinal de Apito”. Diz ele: “Um silvo breve: Atenção, siga / Dois silvos breves: Pare. / Um silvo breve à noite: Acenda a lanterna. / Um silvo longo: Diminua a marcha. / Um silvo longo e breve: Motoristas a postos. / (A esse sinal todos os motoristas tomam lugar nos seus veículos para movimentá-los imediatamente)”. E pronto. Tá aí o poema! Oitenta anos depois ainda não entendo como este pequeno fragmento dadaísta deixou impassíveis sujeitos como Gondin da Fonseca e Oscar Mendes, que espernearam bastante diante do poema da pedra.
O que há de poético em “Sinal de Apito”? Para mim, que sou drummondiano, nada, nada além de uma brincadeira (coisa que “No meio do caminho” não pretendia ser), uma brincadeira bem ao gosto dos dadaístas de 1916 em diante. Numa crônica sobre Godofredo Rangel (em Passeios na Ilha), Drummond fala desse texto como “...algo que eu publicara como poema, e era apenas a transcrição, em linhas irregulares, de um trecho de regulamento da Inspetoria de Veículos”. Ou seja: um “ready-made” à maneira de Marcel Duchamp, que expunha como obra sua uma roda de bicicleta ou um urinol. O Modernismo brasileiro sofreu essa contaminação das vanguardas européias, inclusive no que tinham de mais provocativo, brincalhão, desconcertante. Qualquer vanguarda mistura, de modo aleatório, pouco planejado, obras que se pretendem uma nova maneira de fazer e obras que não passam de pilhérias para irritar os que preferem fazer as coisas à moda antiga. Como se os poetas novos dissessem: “Está vendo o meu Sinal de Apito? Pois eu acho que existe mais poesia nele do que n’O Caçador de Esmeraldas”.
Drummond, por trás dos óculos sérios, tinha um temperamento de clown (ele se auto-denominava “Carlito” às vezes, identificando-se com Chaplin), gostava de pregar peças aos amigos. Isto não transparece muito em sua poesia, e quando surge fica eclipsado pelo peso da seriedade ou da emotividade do resto da obra. Mas ele tinha também seus momentos Marcel Duchamp.
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