quarta-feira, 1 de setembro de 2010

2335) As mulheres andróides (1.9.2010)



(Orcinus Eva, de Jean-Luc Marcastel)

Quando Villiers de l’Isle-Adam escreveu seu romance de proto-ficção-científica, A Eva Futura (1886), talvez o seu principal intuito fosse fazer um cruzamento bárbaro entre a tecnologia do século 19 (usando como protagonista Thomas Alva Edison, então ainda vivo e em plena atividade) e a cultura clássica, simbolizada pelas estátuas famosas de Vênus, do ideal greco-romano-europeu de beleza feminina. Sintomaticamente, um romancista que tem “Adão” no nome cria um romance sobre uma “Eva” produzida artificialmente, à sombra da Árvore da Ciência. O livro de Villiers tem sido repetidamente reeditado e discutido pelo mundo acadêmico, que aliás não poupa críticas ao seu machismo, ou seja, à sua visão implícita de que a mulher ideal é aquela que tem um corpo perfeito e uma mente formatada (em linguajar contemporâneo, “uma cabeça feita”) pelo marido.

É mais ou menos esta a situação proposta pelo filme As esposas de Stepford (Brian Forbes, 1975), em que uma comunidade de yuppies norte-americanos decide matar suas esposas e substituí-las por andróides feitos à sua imagem e semelhança, mas totalmente submissas, voltadas para as tarefas domésticas e para, hmmm, os folguedos da alcova. Para os maridos envolvidos, aquela comunidade (é um desses vilarejos suburbanos de gente rica, uma espécie de condomínio fechado) é uma utopia onde tudo acontece de acordo com a sua fórmula de “o melhor dos mundos”. Do ponto de vista da protagonista, vivida por Katharine Ross, é um pesadelo distópico: ela é jovem, independente, e ao lado de uma amiga fica tentando convencer aquelas donas-de-casa floridas e sorridentes a reivindicar seus direitos. Só que as outras não querem! Querem manter a cozinha brilhando como um espelho, servir drinques para os amigos do esposo, e ser para eles uma versão mais sofisticada de boneca inflável.

O filme de Bryan Forbes é um ótimo retrato de sua época, década de 1970 quando o movimento feminista estava se alastrando nos EUA como incêndio no cerrado. Era a época do Relatório Hite (1976) de Shere Hite, My Secret Garden (1973) de Nancy Friday e outros livros que tratavam a sexualidade feminina de maneira aberta e independente – uma sexualidade politizada e contestadora, o contrário da exploração feita por revistas como Playboy, Hustler etc. A FC entra neste filme como um elemento provocador, dando tintura de pesadelo ao machismo, como se dissesse às mulheres: “É isto que eles fizeram de vocês: autômatos com genitália, empregadas domésticas maquiladas e bem vestidas”.

A presença da atriz Katharine Ross entre essas “Evas futuras” faz uma interessante conexão com o filme anterior da atriz, A primeira noite de um homem, em que ela larga um noivo no pé do altar e foge com Dustin Hoffman, recusando-se ao papel da esposa modelo de um yuppie republicano. A guinada conservadora dos EUA nas últimas décadas deixa todos estes filmes talvez mais atuais do que no tempo em que foram feitos.

2334) “Cortina Rasgada” (31.8.2010)



Alfred Hitchcock foi um dos diretores mais planejadores e meticulosos entre os grandes do cinema, porque há milhares de outros, igualmente planejadores e meticulosos, cuja obra passou em branco, porque de qualidades só tinham essas. Sua obra é valiosa para estudar a distância entre roteiro e filme, e ele próprio afirmou mil vezes que depois que escrevia o roteiro e mandava desenhar o “storyboard” o resto era mera execução. Em seus filmes tardios, como Cortina Rasgada, começa a ficar maior a distância entre planejamento e execução, entre idéia e resultado. As idéias continuam ótimas; a execução às vezes fica meio tosca, talvez pela idade avançada do diretor, ou problemas de produção que ele não tinha mais energia ou disposição para solucionar satisfatoriamente. A cena está meio capenga, mas é o tipo da cena que no roteiro está perfeita, como idéia e como intenção.

Todo filme de Hitchcock tem 7 ou 8 cenas cuidadosamente planejadas e dirigidas, as tais cenas que causam impacto e ficam na mente do espectador. O resto é matéria intermediária, cenas de diálogos, deslocamentos, explicações, a encheção de lingüiça dramatúrgica que conduz o público entre a grande cena anterior e a próxima. Hitchcock não é aquele tipo de diretor para quem toda cena é essencial. Seus filmes têm a silhueta de uma cordileira: picos elevados entremeados de vales rasteiríssimos. Quase todos são assim.

Revi hoje Cortina rasgada (1966), um filme problemático na época, porque abordou tema político do tempo da Guerra Fria (cientista dos EUA finge se passar para o lado comunista para roubar segredos de cientista da Alemanha Oriental). As “grandes cenas” que eu lembrava (e que todo crítico certamente lembra) são a da perseguição no Museu deserto, com os sapatos de Armstrong (Paul Newman) e do policial ecoando no piso; o longo e acidentado assassinato do policial na fazenda (Hitchcock: “Eu queria mostrar como dá trabalho matar uma pessoa”); a reconciliação entre Armstrong e Sarah (Julie Andrews), vista à distância, numa colina, sem diálogo; Armstrong induzindo o alemão a escrever no quadro-negro a equação que lhe faltava; a fuga no ônibus falso; o casal fugindo da polícia no teatro, com um falso alarme de fogo; a fuga final dos dois, em cestos de roupa. São praticamente estas as cenas hitchcockianas do filme. As demais, até Jean Negulesco dirigiria.

Hitchcock queixou-se de pouca sintonia com o casal de protagonistas, e isso passa em todas as cenas românticas: a da colina é um bom exemplo de boa idéia (mostrar as emoções à distância, sem que se ouça o que o casal está dizendo) estragada por direção sofrível. A cena do quadro-negro é uma ótima variante do McGuffin hitchcockiano. Toda a história do filme repousa nessa fórmula matemática que Armstrong precisa trazer para seu país. Para o espectador, aquilo é grego. Mas ele tem que acreditar no valor dela, pela força dramatúrgica investida naquele conjunto de símbolos indecifráveis.