sábado, 24 de abril de 2010

1952) Escândalos sexuais (11.6.2009)



O escritor Bruce Sterling sugeriu o termo “centopéia” para descrever um tipo de crime (não sei se a palavra tecnicamente se aplica) que sempre existiu na política mas que se intensificou com a cultura digital. A centopéia é um conjunto de informações verdadeiras e falsas, misturadas e divulgadas de forma a liquidar a carreira de um político. Todo político tem as fraquezas de qualquer ser humano, agravadas pela embriaguez de poder de quem ocupa um cargo e imagina que continuará ali para sempre. Oportunidades não faltam, e, como dizia Oscar Wilde, “sou capaz de resistir a tudo, menos a uma tentação”.

A centopéia é geralmente um escândalo sexual habilmente preparado pelos adversários da vítima. Segundo Cory Doctorow, que divulgou a teoria no blog BoingBoing, “ela dá a impressão de ser espontânea e estar preocupada com valores morais, mas na verdade é planejada e está visando o poder”. Sterling a chama de centopéia porque ela é segmentada, age às escondidas, e é cheia de veneno. Os ingredientes principais são:

1) Uma vítima numa posição de poder. 2) Um(a) parceiro(a) sexual da vítima. 3) Informações vazadas sobre a conduta sexual da vítima. 4) Militantes online: blogs, listas de mensagens, websaites de vídeos. 5) Atrizes, cantoras ou modelos com algum tipo de envolvimento no caso, para atrair com seu glamour a atenção da massa. Diz Sterling: “um político que tenha um caso com uma mulher feia, gorda, de meia-idade e de origem proletária é praticamente à prova de centopéias”. 6) Políticos de oposição que afirmem estar chocados e peçam a imediata punição da vítima. 7) Mídia digital, tablóides, TV a cabo e redes de TV aberta (que serão exploradas exatamente nesta ordem). 8) Uma investigação policial ou o mero boato a respeito de uma. 9) Uma população feroz e devassa, que se enfurece com a mera idéia de que políticos possam ter o mesmo tipo de relações sexuais ilícitas que eles têm. 10) Aspectos que, quando ocorrem, dão sabor mais picante ao caso: uso de drogas, adolescentes molestados, líderes religiosos (líderes de campanhas anti-pornografia são especialmente vulneráveis a centopéias), venda clandestina de vídeos comprometedores, vazamento de emails e chats, computadores confiscados, roubo de celulares com câmara, grampos telefônicos, malas-diretas anônimas com DVDs difamatórios.

Em geral (diz Sterling) uma centopéia bem feita derruba um político em pouco tempo. Uma centopéia mal sucedida se dilui em mero boato maldoso. A maioria delas é visivelmente produzida por alguém, com revelações sendo liberadas numa sequência que obedece um plano estratégico. O BoingBoing cita exemplos de 2008 na Índia, Grécia, Polônia, Indonésia, África do Sul, Grã-Bretanha e EUA. Mas a centopéia parece se dar bem com o clima moral dos EUA, um país bifronte onde o Moralista e o Depravado moram parede-meia um com o outro, e adivinhem qual dos dois olha pela fechadura para saber o que o outro vive fazendo.

1951) A minha e a sua religião (10.6.2009)



(H. L. Mencken)

O que fazer se um amigo nosso acredita, sincera e profundamente, que o planeta Terra repousa nas costas de uma tartaruga gigante, que por sua vez está sobre outra tartaruga maior ainda, e esta sobre outra ainda maior, e assim por diante, até o infinito? Claro que ninguém deixa barato uma crença como esta. A gente pigarreia, passa a mão nos cabelos, faz uma tentativa: “Olha, Fulano, a hipótese é de fato fascinante, mas você não acha que haveria, digamos, uma maneira mais simples de explicar as coisas, uma teoria com menos jeitão de réptil?...” Por mais que a gente tenha boa vontade, às vezes não adianta. Depois de anos de discussão, a intensidade da crença do nosso amigo está na proporção inversa à verossimilhança dos seus argumentos. Nesses casos a gente diz: “Tudo bem. Vamos falar de outra coisa. Que time você torce?...”

Não estaria fazendo mais do que levar em conta a frase famosa do escritor H. L. Mencken, o qual disse certa vez: “Temos que respeitar a religião de outro indivíduo, mas apenas no mesmo sentido em que respeitamos sua teoria de que sua esposa é bonita e seus filhos são inteligentes”. Não conheço comparação melhor. Religião pertence a esse mesmo território fluido e subjetivo. Não estou aqui questionando a existência de Deus, dos orixás nem das tartarugas. Refiro-me à experiência íntima de cada um, ao sentimento que ele associa à palavras “religião”, “fé”, etc. Admitindo a existência de Deus, é sensato supor que a experiência de Deus vivida por cada um de nós, mesmo a revelação do Deus da Bíblia a cada um dos seus profetas, é uma experiência única. Em seu conjunto, são todas irredutíveis entre si, incomparáveis. Imaginar de outra maneira seria igualar cada um desses profetas ao próprio Deus.

Um pouco dessa convicção subsiste na expressão surrada de que “religião é coisa de foro íntimo”. Esse foro íntimo é a alma privada de cada um, que não se comunica com as almas dos outros mas pode – admitindo-se a premissa da existência de Deus – ser acessada pela Divindade. Deus + São Pedro é uma coisa; Deus + São Paulo é outra. Cada um de nós é um grãozinho de menos-nada, mas, somado a Deus, faz uma diferençazinha que nos resgata do zero.

Dessa maneira cada um de nós tem uma experiência do Divino que se parece consigo mesmo. Revertendo a frase clássica, podemos dizer que cada homem faz o seu Deus à sua própria imagem e semelhança. Não um Deus “parecido comigo”, mas um Deus composto das coisas que sei e que sinto, das coisas que sou capaz de imaginar e de pressentir, que sou capaz de entender , de reverenciar. O Deus de Santo Agostinho e o de São Tomás de Aquino era certamente um Deus intelectual, filosofante, argumentador. O de São Francisco de Assis era cheio de emoção, de despojamento e da alegria das pequenas coisas. Todo Deus é uma espécie de espelho. Teu Deus é aquele que te define, que te cria, que determina quem és.

1950) “Versos Íntimos” de Augusto (9.6.2009)




É o soneto mais conhecido de Augusto dos Anjos e um dos mais populares de nossa língua. Não é um soneto impecável como os dos parnasianos. Como toda obra de Augusto, é o registro sismográfico de emoções intensas e idéias espantosas. Vai, num salto, do abismo ao Everest, e volta, e vai de novo. 

O primeiro quarteto, por exemplo. Nada me tira da cabeça que Augusto primeiro imaginou dizer: “Ninguém assistiu ao formidável enterro...” Mas o verso estava quebrado. Faltava uma sílaba. Ele poderia ter colocado um rípio (palavra “tapa-buraco”) qualquer e ter dito: “Se ninguém assistiu ao formidável...” ou “Pois ninguém assistiu ao formidável...” Mas optou pelo: “Vês?” E conseguiu muito mais impacto.

Em geral, quem faz versos rimados prepara primeiro os últimos. Augusto queria dizer: “Somente a ingratidão – esta pantera – / foi tua companheira inseparável!”. Usou como preparação “formidável” (adjetivo supérfluo, pouco enriquecedor) para efeito de rima. Mas rimar “pantera” com “quimera”, monstro real e monstro imaginário (neste caso um sinônimo de “sonho, fantasia”) é um belo achado.

Eu acho que “Acostuma-te à lama que te espera!” é um dos maiores decassílabos (e um dos mais amargos conselhos) da poesia brasileira. Por mim o soneto acabava aí. Felizmente ele prossegue e nos derruba ao chão com outra verdade de 200 toneladas: “O Homem, que, nesta terra miserável, vive entre feras, sente inevitável necessidade de também ser fera”. 

A “fera” é uma rima além-do-sonoro para a dupla “pantera/quimera” do quarteto anterior. E essa repetição monótona de sufixos em adjetivos grandiloquentes (“Formidável! Inseparável! Miserável! Inevitável!”) acaba nos impondo, pelo exagero, a sensação de verdades definitivas, esmagadoras.

O verso do cigarro no primeiro terceto parece ter entrado apenas para rimar com o “escarro” que Augusto planejou para o verso seguinte. Mas... dêem uma geral, vejam como cigarros e fósforos aparecem em toda a obra do poeta, que nem sei se fumava ou se apenas se maravilhava com esses pequenos e mortais milagres químicos. 

E o “toma” (como o “Vês?” inicial) restaura o tom coloquial, “íntimo”, que o poeta tanto empregou, para desconforto dos puristas do seu tempo. O desfecho do soneto, então, pode não ser impecável (o verso “Se a alguém causa inda pena a tua chaga” é mera preparação), mas é inesquecível, com seus pares complementares e/ou opostos: mão/boca, beija-escarra, afaga-apedreja.

A poesia de Augusto, reconhecidamente difícil, tem seus momentos fáceis, como este. Não digo “fáceis” com desdém. Fácil porque cheio de imagens vívidas, que o leitor assimila no mesmo instante. Imagens com poder de choque, de comunicar verdades poderosas e sofridas. Um desabafo de revolta e de autoafirmação nietzschiana, que ainda hoje, cem anos depois, é recitado em mesas de bar por motoristas, mecânicos de oficina, comerciários, bêbados anônimos cujas mãos e bocas acendem o mesmo fósforo e fumam o mesmo cigarro.






1949) Torcida pernambucana (7.6.2009)



Muita gente já me perguntou por que motivo quase não existe torcida organizada do Flamengo, Corinthians, etc. quando estes times vão jogar em Pernambuco. Aqui na Paraíba, ao contrário, basta o avião do Flamengo apontar no horizonte e as cidades se cobrem de preto-e-vermelho. O Corinthians tem mais torcedores na Paraíba do que o Campinense, e o Botafogo do Rio mais do que o Botafogo de João Pessoa. Por que será? Alguns dos meus leitores sugerem que é porque o paraibano é sem personalidade, gosta mais dos times de fora do que dos seus, e acha que está se valorizando quando o Vasco vem jogar contra o Treze e ele larga em casa a camisa do Treze e compra uma do Vasco.

Meus amigos pernambucanos dizem: “Torcer por time de fora? Pra quê? Time de fora que se dane. Não gosto de nenhum deles. Sou Sport! A única serventia desses times do Rio e de São Paulo é dar surra no Santa Cruz e no Náutico”. Eis o segredo do torcedor pernambucano. Ele não torce pelos times de fora, mas não é por amor à terra, é porque ele detesta os adversários domésticos ainda mais do que detesta os times de fora. Até Ariano Suassuna, recifense adotivo, afirma: “Eu não dou a menor importância a Campeonato Brasileiro. É uma bobagem. O que é importante é ser campeão pernambucano, é ganhar do Náutico e do Santa Cruz. O resto é irrelevante”.

É uma faceta do imenso (e, em alguns aspectos, saudável) bairrismo dos nossos vizinhos. Para eles, Pernambuco vem antes do Brasil, mas o torcedor de lá não torce por qualquer time pernambucano contra os demais; e pelo time de fora ele torce apenas o necessário para derrotar o inimigo local. Para ele, seria um contrassenso largar a camisa do seu Leão, seu Timbu, sua Coral, e vestir, mesmo que por uma tarde apenas, o uniforme de um clube “estrangeiro”.

Daí esse menosprezo que os torcedores pernambucanos têm para com as torcidas da Paraíba, da Bahia, de outros Estados, que se enfeitam todas com as bandeiras e as cores de times cariocas e paulistas que vêm disputar um jogo. Não adianta dizermos: “Sou Treze, mas o Flamengo é meu segundo time”. Pernambucano não tem segundo time. Um torcedor do Náutico fica feliz da vida quando o Sport perde para o Palmeiras: sai às ruas, faz buzinaço, etc. Mas – ir para o estádio com a camisa do Palmeiras?! De jeito nenhum. Prefeririam desfilar de baby-doll na Ponte Buarque de Macedo.

Vai ver que têm razão. Porque quando admitimos a possibilidade de torcer por um time carioca, digamos, contra nossos adversários locais, estamos nos deixando contaminar de um certo amor por esse time estrangeiro. Daí a pouco estaremos acompanhando o campeonato do Rio, torcendo para que ele faça uma boa campanha. Comemoraremos quando for campeão carioca. E o horror dos horrores surgirá no dia em que esse time carioca virá à nossa cidade enfrentar nosso time local... e nos descobriremos com a vontade secreta de que o carioca vença. Será o último prego no caixão do Nordeste.

1948) O livro eletrônico (6.6.2009)



Um amigo meu chegou com uma engenhoca que parecia uma calculadora grande, com uma tela branco-leitosa do tamanho de um maço de cigarros; e disse que tinha ali dentro uma biblioteca de não-sei-quantos mil títulos. Manuseei o gadget: de fato, tinha uma lista que a gente rolava mediante uma barra vertical, assinalava um título, clicava não sei onde, e de repente abria-se na telazinha, numa página com letras agradáveis, em fonte de tamanho aceitável para os meus olhos, o texto de Moby Dick. Maravilha. Fiquei morrendo de vontade de comprar um, mas quando devolvi o aparelho meu amigo me asseverou, confiante: “O livro de papel está com os dias contados”.

Calma, companheiros! Talvez a única coisa que neste momento se possa afirmar com segurança seja: “O nicho de mercado do livro de papel está diminuindo”. O livro eletrônico tem inúmeras vantagens, e mal posso esperar que os preços das engenhocas diminua, para que eu compre uma delas (pelo que já vi, está entre 500 e 1.000 dólares). Para mim, contudo, um livro eletrônico tem que ser do tamanho e do peso aproximados de um livro de papel. Não tem sentido carregar na pasta ou na mochila algo que, mesmo carregando dentro de si 10 mil livros, tenha o peso de uma dúzia.

Num artigo recente (http://online.wsj.com/article/SB123980920727621353.html#), Steve Johnson observa que o e-book criado pela livraria Amazon, o Kindle, serve como ferramenta de leitura e de compra. Numa viagem de trabalho, fazendo hora num café e lendo no Kindle um tratado técnico, ele ficou entediado, teve vontade de ler um romance, e um minuto depois, com o mesmo aparelho, acessou o saite da Amazon e baixou a versão eletrônica de um livro de Zadie Smith. Entre a vontade, a consulta, o pagamento e o início da leitura do novo livro decorreram apenas poucos minutos. Diz ele: “O fato de existir uma livraria infinita ao alcance dos nossos dedos é uma boa notícia para quem vende livros, e pode ser ótimo para a disseminação do conhecimento, mas não é necessariamente uma boa notícia no que diz respeito ao recurso mais escasso do século 21: a atenção”.

Ter 5 mil romances dentro da mochila não é muito diferente de tê-los nas estantes do escritório. O tempo necessário para ler cada um deles é mais ou menos o mesmo. O que a biblioteca eletrônica nos dá é a invisibilidade do acervo. Quando meus livros começam a se empilhar no chão percebo que está na hora de “fazer uma limpa” nas estantes ou comprar uma estante nova. Mas um leitor eletrônico é rigorosamente o mesmo com dois mil ou vinte mil títulos no seu interior. Ele nos garante o álibi do espaço ilimitado, e nos faz esquecer que nosso tempo de leitura não é ilimitado. Daqui a alguns anos talvez seja possível colocar um milhão de romances dentro de um HD, mas duvido que haja tecnologia capaz de criar um dia de 48 horas. Ser dono da Biblioteca de Babel ou da biblioteca de papel é irrelevante. Só podemos ler um livro de cada vez.