Artigos de Braulio Tavares em sua coluna diária no "Jornal da Paraíba" (Campina Grande-PB), desde o 0001 (23 de março de 2003) até o 4098 (10 de abril de 2016). Do 4099 em diante, os textos estão sendo publicados apenas neste blog, devido ao fim da publicação do jornal impresso.
sábado, 24 de abril de 2010
1950) “Versos Íntimos” de Augusto (9.6.2009)
É o soneto mais conhecido de Augusto dos Anjos e um dos mais populares de nossa língua. Não é um soneto impecável como os dos parnasianos. Como toda obra de Augusto, é o registro sismográfico de emoções intensas e idéias espantosas. Vai, num salto, do abismo ao Everest, e volta, e vai de novo.
O primeiro quarteto, por exemplo. Nada me tira da cabeça que Augusto primeiro imaginou dizer: “Ninguém assistiu ao formidável enterro...” Mas o verso estava quebrado. Faltava uma sílaba. Ele poderia ter colocado um rípio (palavra “tapa-buraco”) qualquer e ter dito: “Se ninguém assistiu ao formidável...” ou “Pois ninguém assistiu ao formidável...” Mas optou pelo: “Vês?” E conseguiu muito mais impacto.
Em geral, quem faz versos rimados prepara primeiro os últimos. Augusto queria dizer: “Somente a ingratidão – esta pantera – / foi tua companheira inseparável!”. Usou como preparação “formidável” (adjetivo supérfluo, pouco enriquecedor) para efeito de rima. Mas rimar “pantera” com “quimera”, monstro real e monstro imaginário (neste caso um sinônimo de “sonho, fantasia”) é um belo achado.
Eu acho que “Acostuma-te à lama que te espera!” é um dos maiores decassílabos (e um dos mais amargos conselhos) da poesia brasileira. Por mim o soneto acabava aí. Felizmente ele prossegue e nos derruba ao chão com outra verdade de 200 toneladas: “O Homem, que, nesta terra miserável, vive entre feras, sente inevitável necessidade de também ser fera”.
A “fera” é uma rima além-do-sonoro para a dupla “pantera/quimera” do quarteto anterior. E essa repetição monótona de sufixos em adjetivos grandiloquentes (“Formidável! Inseparável! Miserável! Inevitável!”) acaba nos impondo, pelo exagero, a sensação de verdades definitivas, esmagadoras.
O verso do cigarro no primeiro terceto parece ter entrado apenas para rimar com o “escarro” que Augusto planejou para o verso seguinte. Mas... dêem uma geral, vejam como cigarros e fósforos aparecem em toda a obra do poeta, que nem sei se fumava ou se apenas se maravilhava com esses pequenos e mortais milagres químicos.
E o “toma” (como o “Vês?” inicial) restaura o tom coloquial, “íntimo”, que o poeta tanto empregou, para desconforto dos puristas do seu tempo. O desfecho do soneto, então, pode não ser impecável (o verso “Se a alguém causa inda pena a tua chaga” é mera preparação), mas é inesquecível, com seus pares complementares e/ou opostos: mão/boca, beija-escarra, afaga-apedreja.
A poesia de Augusto, reconhecidamente difícil, tem seus momentos fáceis, como este. Não digo “fáceis” com desdém. Fácil porque cheio de imagens vívidas, que o leitor assimila no mesmo instante. Imagens com poder de choque, de comunicar verdades poderosas e sofridas. Um desabafo de revolta e de autoafirmação nietzschiana, que ainda hoje, cem anos depois, é recitado em mesas de bar por motoristas, mecânicos de oficina, comerciários, bêbados anônimos cujas mãos e bocas acendem o mesmo fósforo e fumam o mesmo cigarro.
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