Subsistem pelo menos três registros audiovisuais em que Abraham ilustra diante das câmaras o seu processo de trabalho. No mais explícito deles, o filósofo redige para os documentaristas a página 346 de sua “Indagação Sobre a Epistemologia do Parecer”, popularmente conhecida hoje como “Falsa Mimesis”.
Abraham escolhe uma folha de papel em branco, besunta-a de tinta negra, com um pincel largo, e a põe para secar ao sol. Depois, mostra os doze estiletes, com finíssimas pontas de aço, que são seus instrumentos. Toma de um deles, e põe-se a trabalhar.
Seu método (diz ele) é o de partir de fora para dentro, partir da zona de maior entropia linguística, que são as bordas da página, e ir gradualmente se aproximando da Área de Virtualidade Semântica. As margens são cuidadosamente raspadas, e nesses pontos o papel retoma sua brancura anterior. (Sabe-se que Abraham trabalhava, na confecção de seus manuscritos, com folhas de papel maiores e mais espessas do que o papel comum.)
Essas franjas de brancura vão se alargando para dentro até demarcar de forma difusa a “mancha gráfica”, onde se dará a parte decisiva do trabalho.
O passo seguinte (explica a voz de Abraham em “off”) é avaliar quantos parágrafos serão necessários, sua ordem, a extensão de cada um. A filosofia Eliminacionista tem como lema “Do Todo para A Parte”, pois é nesse trajeto que se dá a percepção humana, que intuitivamente percebe primeiro os blocos mais volumosos, e em seguida os decompõe em estruturas sucessivamente menores.
Esboçados o tamanho e o formato dos parágrafos, cabe a Abraham sua subdivisão em linhas cuja espessura provisória deve preservar espaço suficiente para as possíveis letras maiúsculas, letras ascendentes (b, d, etc.), letras descendentes (p, q, etc.), bem como os acentos e os sinais de pontuação.
Uma das principais contribuições técnicas de Abraham Soylent para a teoria estética foi seu axioma de que “a Arte é um Equilíbrio Final entre os equilíbrios e desequilíbrios parciais”. É esta concepção visual que o faz selecionar o desenho de cada linha (“o eletrocardiograma do texto”, diz ele, num momento de descontração) e as letras que deverão concretizá-lo.
A fase final consiste no minucioso desbastar das camadas de tinta até deixar somente as letras miúdas, serifadas, negras sobre fundo branco. “É o momento de maior concentração”, afirma Abraham, lupa engastada ao olho, estilete finíssimo escavando os interstícios de um “a” minúsculo ou o golfo delicado no interior de uma interrogação. “O que é extirpado não pode ser trazido de volta, e já houve casos em que a raspagem do ponto de um ‘i’ pôs a perder uma página quase pronta”.
(Este conto está incluído no livro Fanfic, São Paulo, Editora Patuá, 2019)