sexta-feira, 26 de março de 2010

1829) A Estética Eliminacionista (18.1.2009)




A premissa estética da escola literária dos Eliminacionistas foi formulada por Abraham Soylent nestes termos: “É insensato produzir uma obra de arte a partir do Nada. A única trajetória possível é partir do Aléphico Todo e erodi-lo até deixar apenas a obra, a que chamaremos o Significante Resíduo”. 

Subsistem pelo menos três registros audiovisuais em que Abraham ilustra diante das câmaras o seu processo de trabalho. No mais explícito deles, o filósofo redige para os documentaristas a página 346 de sua “Indagação Sobre a Epistemologia do Parecer”, popularmente conhecida hoje como “Falsa Mimesis”. 

Abraham escolhe uma folha de papel em branco, besunta-a de tinta negra, com um pincel largo, e a põe para secar ao sol. Depois, mostra os doze estiletes, com finíssimas pontas de aço, que são seus instrumentos. Toma de um deles, e põe-se a trabalhar. 

Seu método (diz ele) é o de partir de fora para dentro, partir da zona de maior entropia linguística, que são as bordas da página, e ir gradualmente se aproximando da Área de Virtualidade Semântica. As margens são cuidadosamente raspadas, e nesses pontos o papel retoma sua brancura anterior. (Sabe-se que Abraham trabalhava, na confecção de seus manuscritos, com folhas de papel maiores e mais espessas do que o papel comum.) 

Essas franjas de brancura vão se alargando para dentro até demarcar de forma difusa a “mancha gráfica”, onde se dará a parte decisiva do trabalho. 

O passo seguinte (explica a voz de Abraham em “off”) é avaliar quantos parágrafos serão necessários, sua ordem, a extensão de cada um. A filosofia Eliminacionista tem como lema “Do Todo para A Parte”, pois é nesse trajeto que se dá a percepção humana, que intuitivamente percebe primeiro os blocos mais volumosos, e em seguida os decompõe em estruturas sucessivamente menores. 

Esboçados o tamanho e o formato dos parágrafos, cabe a Abraham sua subdivisão em linhas cuja espessura provisória deve preservar espaço suficiente para as possíveis letras maiúsculas, letras ascendentes (b, d, etc.), letras descendentes (p, q, etc.), bem como os acentos e os sinais de pontuação. 

Uma das principais contribuições técnicas de Abraham Soylent para a teoria estética foi seu axioma de que “a Arte é um Equilíbrio Final entre os equilíbrios e desequilíbrios parciais”. É esta concepção visual que o faz selecionar o desenho de cada linha (“o eletrocardiograma do texto”, diz ele, num momento de descontração) e as letras que deverão concretizá-lo. 

A fase final consiste no minucioso desbastar das camadas de tinta até deixar somente as letras miúdas, serifadas, negras sobre fundo branco. “É o momento de maior concentração”, afirma Abraham, lupa engastada ao olho, estilete finíssimo escavando os interstícios de um “a” minúsculo ou o golfo delicado no interior de uma interrogação. “O que é extirpado não pode ser trazido de volta, e já houve casos em que a raspagem do ponto de um ‘i’ pôs a perder uma página quase pronta”.


(Este conto está incluído no livro Fanfic, São Paulo, Editora Patuá, 2019) 


1828) “Imagens do mundo visionário” (17.1.2009)



Este curioso filme realizado em 1964 por Henri Michaux e Eric Duvivier não é filme surrealista, não é documentário, não é filme de vanguarda e não é filme científico, embora tenha um pouco de tudo isto. Em 1963, o departamento de cinema do Laboratório Sandoz, na Suíça, resolveu produzir um filme educacional que ilustrasse para o grande público os efeitos produzidos pela mescalina e pelo haxixe. O Sandoz era o laboratório onde o LSD foi sintetizado pela primeira vez, em 1938.

Para isto, foi contactado Henri Michaux (1899-1984), poeta, escritor, conhecedor em primeira mão de drogas alucinógenas. Michaux foi também um grande viajante no sentido físico da palavra, tendo percorrido todo o Oriente, a África e a América Latina. Diz-se que chegou ao Brasil em 1939 e aqui ficou por dois anos. Coube-lhe escrever um roteiro a partir de suas experiências, e a filmagem ficou por conta de Eric Duvivier, um documentarista com centenas de filmes curtos, muitos deles sobre temas psiquiátricos.

O filme resultante pode ser visto no saite UbuWeb, em: http://www.ubu.com/film/michaux_images.html. São 38 minutos de imagens desconexas acompanhadas por música dissonante. Não sei se correspondem de fato ao que se sente sob efeito da mescalina e do haxixe (o filme é dividido em duas partes bem diferentes entre si). Os efeitos visuais e a sucessão aleatória de imagens lembram os filmes da vanguarda francesa dos anos 1920-30, como Entr’Acte de René Clair ou Retour à la Raison de Man Ray. Na parte da mescalina predominam os efeitos de prismas colocados diante da objetiva da câmera. Na parte do haxixe, sucedem-se alguns quadros impressionantes que lembram experiências de Buñuel ou Germaine Dulac: o corpo de uma mulher coberto de lama, que surge diante da câmara como uma cordilheira; uma casa em cima da qual erguem-se andaimes precários, onde homens de terno preto e cartola examinam documentos, sendo que um deles sobe e desce entre um “andar” e outro por um elevador rústico; uma espada flutuando no ar e decapitando um homem, cuja cabeça passa a sobrevoar os bosques em cima de um tapete mágico.

Algumas imagens são típicas cenas moralizantes dos filmes educativos sobre drogas. As duas partes do filme são introduzidas por imagens de um homem desnorteado, de olhos erráticos, cambaleando pela sala, apalpando o próprio rosto. Deduz-se que todas as cenas que se seguem são visualizações do que se passa em sua mente sob o efeito das drogas. Imagens do mundo visionário parece-se com os filmes da vanguarda francesa que Duvivier (nascido em 1928) certamente assimilou durante sua juventude de cinéfilo. A ligação entre vanguarda narrativa e drogas surge com frequência na literatura. Este filme “careta” e imprevisível tem um resultado certamente diverso do que foi pretendido pelos produtores, e talvez somente sua origem “oficial”, encomendada, o mantenha ignorado pelas Histórias do Cinema.

1827) Borges-Johnson, Bioy-Boswell (16.1.2009)



Virou clichê afirmar que a Vida de Samuel Johnson, de Thomas Boswell (1791) é uma das melhores biografias já escritas. O Dr. Johnson (1709-1784) foi um homem de letras muito atuante na Inglaterra de seu tempo, e o compilador do Dictionary of English Language (1755), uma obra monumental, de rara inteligência e erudição. Bastaria este dicionário e a biografia escrita por Boswell para tornar Johnson um nome obrigatório nas letras britânicas. Boswell o conheceu aos 22 anos de idade, quando Johnson já tinha 54, mas anotou minuciosamente todos os seus encontros ao longo dos 21 anos em que conviveram, até a morte do doutor.

Não há como não ver nessa amizade, e na obra resultante, o modelo para um dos livros mais impressionantes e menos comentados dos últimos anos: Borges, extrato dos diários que Adolfo Bioy Casares manteve de sua convivência com Jorge Luís Borges entre 1947 e 1989. O padrão é muito semelhante: o escritor mais jovem mantém anotações precisas de tudo que foi conversado entre os dois durante uma vida inteira lado a lado. Já comentei aqui (“Borges de Bioy Casares”,17.10.2007) este prodigioso livro de 1.600 páginas (em um ano e três meses cheguei à página 875; tenho medo que um dia acabe).

Na página 646, Borges comenta com Bioy: “Diz a Enciclopédia Britânica que a biografia de Johnson não é o livro mais lido do mundo porque é um todo contínuo, não dividido em capítulos. Quando entramos de fato nele não conseguimos mais sair, mas entrar ali é difícil. Será que Johnson sabia que Boswell estava escrevendo uma biografia sua? Creio que sim. Isto explicaria a inatividade de Johnson em seus últimos anos. Não escrevia, não apenas por indolência, mas pela certeza de que nada do que dizia iria se perder. Teria ele curiosidade em ver o que Boswell estava produzindo, de saber como o livro o retratava? Talvez não. Em todo caso, não acho que Johnson tivesse corrigido nada. Dar-se o trabalho de corrigir uma obra assim não se parece muito a Johnson (por sua preguiça, pela generosidade de sua alma, por indiferença)”.

Enquanto Borges faz estes comentários, Bioy se pergunta o mesmo: “Eu me perguntava, enquanto isto, se ele suspeitava da existência deste livro; se teria curiosidade de lê-lo; se o corrigiria; se a circunstância de que ultimamente escrevia tão pouco não se devia não só à deficiência da visão e à preguiça, mas também ao conhecimento deste livro”. Saber-se biografado pelo seu melhor amigo, principal parceiro e confidente de todas as horas parece de bom tamanho para qualquer escritor. Só não sei é se Borges perceberia o quanto o retrato (aparentemente sincero e veraz) de Bioy o humaniza, mostrando-o com defeitos, limitações e preconceitos que sua obra não revela. E principalmente se se daria conta do quanto o livro é um retrato devastador, acachapante, da intelectualidade argentina daquela época. Biografado e biógrafo não deixam pedra sobre pedra.

1826) Os Roteiristas do Destino (15.1.2009)




De vez em quando eu escapo de morrer. Às vezes o táxi em que volto para casa tira um fino num poste. Ou então eu consigo perceber a tempo que está faltando uma lasca na boca da garrafa de cerveja. Ou levo meus exames ao médico, ele lê de cima a baixo, boceja e diz que eu estou melhor do que ele. 

Sempre que isso acontece, penso à noite, no escuro, com a cabeça no travesseiro, que o meu destino (e o de todos) é decidido no Céu, num daqueles Céus de filme de Hollywood ou novela da Globo, com nuvens de algodão e divisórias de isopor. Anjos de terno preto e asas brancas, os Roteiristas, determinam as ações de cada ser humano, nesta superprodução com seis bilhões de figurantes.

Vou adormecendo, embalado por essa hipótese tranquilizadora. Não preciso me preocupar. Os roteiristas mudaram de idéia. Estava previsto que o táxi se amarfanhasse comigo dentro, ou que o caco de vidro me perfurasse os órgãos, ou que o doutor empalidecesse e dissesse: “Meu Deus! Você devia ter me procurado quando isso começou a lhe incomodar!” 

Mas vocês sabem como é reunião de roteiristas. Toda hora surge um problema. Quando chegamos ao capítulo 15.638, e o público já perdeu qualquer senso de orientação, um deles se levanta e aponta com o dedo um nome no mural e diz: “Esse cara aqui. Na verdade, ele não morre. Vamos precisar dele para algo muito importante, no capítulo...” 

Nesse momento acordo, banhado em suor frio. Que capítulo? E qual a coisa importante que preciso fazer? Não sei. A informação se dissipou quando acordei.

Seguem-se dias de angústia, porque começo a achar que só sou útil aos Roteiristas (e que eles só me manterão no enredo) na medida em que eu me dispuser a fazer o que eles planejam. Mas o que é?! 

Este é o mal dos roteiros cósmicos em 30-D. Numa novela comum, tudo é fácil. A gente escreve para o personagem pular no precipício e o ator pula, porque sabe que há colchões de espuma disfarçados, fora do enquadramento. Não há livre-arbítrio. 

Mas se estamos postulando um Game Multiplex como este aqui do planeta Terra, os Atores têm a liberdade de improvisar, só não podem é se afastar muito do roteiro, porque nesse caso os anjos de terno preto se impacientam (é personagem demais, e o Redator Final fica cobrando serviço), lá vai o táxi ao poste, e eles arranjam outro para fazer o que é para ser feito.

Eis o busílis – descobrir o que é para ser feito, descobrir qual a razão que os leva a me manterem aqui, quando já tiveram mil chances de se livrar de mim. 

Será que esperam que eu escreva um romance? Mãos à obra. Compor uma música que vai ser o sucesso da atriz principal no capítulo 18.356? Deixa comigo. Ser pai de uma criança que no capítulo 38.615 vai ganhar o primeiro Nobel brasileiro? Não há problema. 

E lá vou eu, marcando “x” em tudo quanto é quadrinho, apostando nas loterias de mim mesmo, para que meu personagem se justifique e se mantenha no ar por sécula-seculóro, amém.