segunda-feira, 8 de março de 2010

1764) Adeus ao mundo das coisas (4.11.2008)



(Gerardo Mourão)

É tradição da poesia popular. Quando um personagem está indo embora de sua terra natal, ou quando está às portas da morte, começa a se despedir. Despede-se da família, dos amigos, dos animais domésticos. Despede-se de seus objetos, despede-se da paisagem, despede-se do céu, do sol, das estrelas. 

É um adeus pungente ao mundo das coisas, o adeus de quem sabe que está vendo cada coisa pela última vez.

Há milhares de trechos assim no romanceiro ibérico, nas baladas britânicas. No livro Guerreiros do Sol (Ed. Girafa, pág. 200 e seguintes), Frederico Pernambucano de Melo transcreve um “adeus de Lampião” em sextilhas (de autor desconhecido), despedindo-se de vilas, povoados e lugarejos por onde passou: 

Adeus Malhada dos Bois 
quarteirão que me criei! 
Quixaba fica de banda 
Volta e Sítio eu nunca andei, 
adeus Santo Amaro Novo 
São Brás e Riacho do Mei. 

São trinta sextilhas compactas, fervilhantes de nomes de lugares. Diz Pernambucano: “Versos de um Adeus sertanejo, perfeito na listagem microgeográfica dos pontos de referência do cangaceiro”.

Um pouco deste espírito está na cena final de Nossa Cidade de Thornton Wilder, uma peça de 1939 que vi quando garoto numa inesquecível montagem com grupo campinense, no Teatro Severino Cabral. 

É a história de Grover’s Corner, uma cidadezinha do interior dos EUA. No final, a garota que morrera recebe permissão para voltar ao mundo onde passou a infância, para vê-lo pela última vez, sem ser vista (numa situação semelhante à recriada anos depois por Bergman em Morangos Silvestres). E ela diz: 

“Eu nunca percebi. Tudo isto acontecia e nós não notávamos. Podem me levar de volta, para a colina, para minha sepultura... Mas, espere! Quero dar uma última olhada. Adeus... Adeus, mundo... Adeus, Grover’s Corner... Mamãe, papai... Adeus, tique-taque dos relógios... e os girassóis de mamãe. E a comida, e o café. E vestidos recém-passados a ferro, e banhos quentes... e dormir, e acordar... Oh, Terra, você é bela demais para que alguém perceba.

Será isto algo primitivo, algo da mente interiorana? Numa entrevista à revista Azougue (número especial de 10 anos, 2004), o poeta Gerardo Mello Mourão conta a morte de seu irmão, aos oito anos de idade, quando ele, Gerardo, tinha três:

“Minha mãe sabia que ele ia morrer. Ela era uma mulher apaixonada, uma pessoa mística. Minha mãe disse: ‘Meu filho, você vai pro céu, você nunca mais vai vir aqui. Você vai se despedir de sua casa agora’. E ele disse: ‘Quero me despedir dos potes de água’. Então ele tomou um banho à noite e falou: ‘Adeus potinho, nunca mais vou beber sua água’. Para um copinho de alumínio de onde bebíamos água: ‘Adeus copinho do irmãozinho, nunca mais vou brigar com ele’. Tinha uma água que só o meu avô bebia, feita com folhas de abacate, a água era fervida com folhas de abacate: ‘Adeus agüinha do vovô!”. (...) O homem que vivia ali tinha uma relação visceral com as coisas da terra”.





1763) Machado: Adão e Eva (2.11.2008)



(Machado, por Loredano)

O cético Machado era chegado a umas parábolas cujo efeito sobre o clero de seu tempo não sei avaliar. Usava de forma desabusada a mitologia bíblica, torcendo-a a seu proveito, desconstruindo-a de uma maneira simpática, até mesmo para não inquietar as leitoras de revistas da época, que provavelmente cultivavam um cristianismo meio talibanesco. Contos como “A Igreja do Diabo” e este “Adão e Eva” deviam provocar algum desconforto.

Daí que este comece e acabe da maneira mais pacata, com um pós-jantar comodamente burguês em que a dona da casa oferece um docinho aos convidados, estes enveredam por uma dessas discussões ociosas que condizem com barrigas cheias, até que o dr. Veloso, o juiz-de-fora, se atreve a sugerir que o episódio do Paraíso Terrestre não teria ocorrido como a Bíblia o relata. Surpresa de todos, e o dr. Veloso passa a descrever como teria sido o Gênesis. Para ele, coube ao Demônio, e não a Deus, a criação do mundo. Em vez de Deus criar algo e o Tinhoso introduzir-lhe imperfeições, é o contrário. O Diabo é que cria um mundo inóspito e agressivo, e cabe a Deus melhorá-lo.

O Diabo, portanto, criou Adão e Eva, ambos belos, mas sem alma, e “só com ruins instintos”. Deus sabotou-lhe a obra dando alma ao casal, além de “sentimentos nobres, puros e grandes”. A inveja do Diabo o leva a emparceirar-se à Serpente, para que esta o ajude a recuperar suas criações. Passa-lhe as instruções, que são as que já sabemos; e cabe à Serpente um eloqüente parágrafo de sedução, em que descreve a Eva todas as mulheres em que se tornará no futuro, caso conceda provar do fruto: Cleópatra, Dido, Semíramis, Safo... Eva a escuta, e abana a cabeça: não, não e não. Adão aproxima-se, escuta também a Serpente, e confirma: comer aquilo, de jeito nenhum.

Nesse instante os céus se abrem e, mandado por Deus, surge o arcanjo Gabriel, com seu “elmo de diamante, que rutila como um milhar de sóis”. Este elogia a firmeza dos dois, e anuncia-lhes que tendo passado na prova subirão para o Paraíso propriamente dito. “A Terra que deixastes, fica entregue às obras do Tinhoso, aos animais ferozes e maléficos, às plantas daninhas e peçonhentas, ao ar impuro, à vida dos pântanos”.

Assim o dr. Veloso conclui sua narrativa, que deixa perplexos todos os comensais, menos Frei Bento, o carmelita, “que conhecia o juiz-de-fora como um dos mais piedosos sujeito da cidade, e sabia que era também jovial e inventivo, e até amigo da pulha, uma vez que fosse curial e delicada; nas cousas graves, era gravíssimo”.

Nesse juiz-de-fora penso reconhecer um pouco do próprio Machado, se não o do convívio, pelo menos o da escrita, que não recusava a pena da galhofa. “Adão e Eva” sugere que o pecado da Ciência salvou a Terra de continuar para sempre um matagal inóspito e um covil de feras. Cedendo à Serpente e à curiosidade, nosso casal de avós povoou o mundo e trouxe todas as coisas boas que habitam nele, a par com as ruins.

1762) Delany e o romance (1.11.2008)





(Samuel R. Delany)

Um romance é um conjunto de instruções verbais que nos permitem criar mentalmente uma história. Ao ler essas instruções, visualizamos pessoas, situações, ambientes. Acompanhamos ações e peripécias. Temos acesso ao que se passa na mente dos personagens. 

O norte-americano Samuel R. Delany, além de romancista, é um crítico literário e professor de literatura com formação estruturalista, e aborda a linguagem com um rigor que deixa perplexos os leitores mais desavisados. Diz ele, por exemplo: 

“Um romance é uma imagem modificada quarenta e nove mil, novecentas e noventa e nove vezes”.

Delany está usando aqui o cálculo convencional que considera 50 mil palavras a extensão média de um romance. O que ele nos diz, em suma, é que cada nova palavra lida pelo leitor deve trazer uma informação nova, que expanda a imagem que ele tinha até então. 

Um texto literário é uma série de informações em que cada informação nova tem o poder de modificar o significado de tudo que veio antes dela, mesmo que esse significado já parecesse cristalizado, pronto, definitivo. 

Delany se refere a “palavras”, mas eu deixo barato: digamos “frase”. Cada frase de um romance deve fazer “cair uma ficha” na mente do leitor, uma ficha que não tinha caído até então.

Outra frase de Delany, que complementa e aprofunda a anterior, diz: 

“Uma história é um remanejamento de miríades de micro-memórias em uma nova ordenação”. 

Essas miríades (=dezenas de milhares) de micro-memórias são tudo que assimilamos ao longo da leitura – o que lembramos dos personagens, das situações, dos eventos. Isto é importante porque não há dois leitores que tenham, durante a leitura, a mesma imagem mental do que ocorre num conto, quanto mais num romance com centenas de páginas. 

Algumas, entre esses milhares de micro-memórias, vão sendo ativadas por cada novo trecho lido, levando-nos a tirar conclusões e a organizar em nossa mente “o que é o livro”, que história é aquela que está sendo contada.

Surge daí aquela velha máxima de que quando pegamos para reler um livro ele sempre “mudou” desde a primeira vez. É claro! 

Se eu li Vidas Secas ou O Senhor Embaixador quando tinha 25 anos, tenho uma idéia razoavelmente correta do que é o livro, de seu enredo, peripécias, como começa, como acaba, o que se sucede aos personagens. Sem falar na linguagem, no “tom”, na voz narrativa. 

Mas quem me garante que, relendo estes livros hoje, eu terei a mesma impressão? Os milhares de micro-memórias que formei durante a primeira leitura se dissiparam. Deixaram uma marca em minha lembrança, mas uma a marca que poderá perfeitamente ser invalidada por uma nova leitura, e substituída por outra muito diferente. Minha reação a cada frase, hoje, poderá ser muito diferente da primeira. 

O livro mudou, não porque as frases impressas na página tenham mudado, mas porque o livro não é aquele conjunto de frases, o livro é o que acontece na minha cabeça quando eu as leio.





1761) A magia dos números (31.10.2008)



Sempre fui um mau aluno em matemática, mas, curiosamente, sempre gostei de brincar com números. Vezes sem conta, quando era adolescente, eu me sentava numa poltrona com lápis e papel, rabiscando números ao acaso, fazendo cálculos sem objetivo, tentando “fazer descobertas matemáticas”, inspirado por livros como O Homem que Calculava de Malba Tahan. Acabava descobrindo algumas coisas. Para que serviam? Para nada, provavelmente, e com certeza já eram coisas conhecidas desde os gregos. Mas o prazer de descobrir uma coisa sozinho era justificativa suficiente.

Por exemplo: alguém deve lembrar um joguinho com palitos de fósforos dispostos em quatro filas com 1, 3, 5 e 7 palitos, onde cada jogador tira um certo número de palitos, alternadamente, e ganha quem deixar o derradeiro palito para ser tirado pelo oponente (este jogo aparece em O Ano Passado em Marienbad de Alain Resnais). Eu pensava: por que esses números? O que têm eles de especial? Somei-os e deu 16. Ora, 16 é o quadrado de 4, que está ausente da lista (sendo uma quantidade par de números, não aparece um “número do meio”), mas seria justamente o termo mediano da lista, aparecendo entre o 3 e o 5.

Portanto, criei uma regra hipotética: “A soma de uma quantidade ‘n’ de números ímpares sucessivos é o quadrado do termo intermediário dessa série, ainda que este termo esteja apenas subentendido”. Vamos fazer um teste aumentando a série para 1, 3, 5, 7, e 9. Qual a soma deles? É 25. Ou seja, o quadrado de 5, termo intermediário (desta vez visível) da série. Nova experiência com 1, 3, 5, 7, 9 e 11. Qual é a soma disto? É 36, que é o quadrado de 6, termo intermediário da série, oculto entre o 5 e o 7.

Por que acontece assim? Acho que porque o termo intermediário é sempre igual à quantidade de termos considerados. Somar 1, 3, 5, e 7 equivale a somar 4, 4, 4 e 4, porque se a gente prestar atenção vai ver (vide o episódio de Gauss, já comentado aqui em “A arte de olhar diferente”, 14.10.2003) que a soma dos termos extremos (1+7, 3+5, etc.) é sempre a mesma. Se a gente se fixar no meio da série vai ver que os números crescem para a direita e diminuem para a esquerda sempre na mesma proporção, ou seja, isto nivela a série justamente nesse termo do meio.

Para que serve isto? Não sei, mas tudo que tem lógica serve para alguma coisa. Quando Tales de Mileto ou Anaximandro de Alexandria ou algum outro sujeito antigo descobriu essa regrinha acima, coisa que certamente aconteceu, não sabia que utilidade poderia ter, mas certamente anotou, como eu anotei. E é possível que mil anos depois esse negócio tenha servido a alguém que estava calculando o peso de uma catedral gótica ou a pressão do gás de uma caldeira.

Descobertas matemáticas, desde as mais bobas até as mais complicadas, são respostas para perguntas que ninguém nunca precisou fazer, mas quando vem a fazê-las um dia descobre com alívio que a resposta já estava pronta, à sua espera.

1760) Burroughs, o memorioso (30.10.2008)



(Augusten Burroughs)

O conto de Jorge Luis Borges “Funes, o memorioso” fantasia a possibilidade de existir um ser humano com memória total, alguém que gravou com exatidão (e pode evocar com facilidade) cada momento de sua vida, cada imagem, cada som, cada sensação. Funes era assim: um rapazola que vivia num quarto dos fundos, jogado num sofá, com olhos entreabertos, mas seu mundo mental era mais intenso que o de cem pessoas somadas. Qualquer minuto do seu passado lhe era instantaneamente acessível, e mais: ele podia comparar um som escutado aos seis anos com outro escutado aos quinze, e justapô-los na mente para melhor examiná-los.

Quem diz ser assim também é o norte-americano Augusten Burroughs. Seu livro de memórias Running with Scissors despertou controvérsias e um processo judicial. Burroughs jura de pés juntos que de fato lembra tudo aquilo de que diz se lembrar. Talvez sem a precisão absoluta de Funes (que afinal não passa de uma criação imaginária), ele não obstante diz, durante uma entrevista ao jornalista Sam Anderson, que sua memória borbulha de lembranças sem parar. “Lembro-me de quando tinha oito meses de idade, na minha cadeira alta. Lembro-me de quando aprendi a andar. Lembro do exato som produzido pela colher-de-pau numa panela de alumínio, no fogão.”

Durante a entrevista, realizada num bairro onde morou na juventude, ele continua sendo assaltado por imagens. “É como se o tempo passado estivesse depositado em camadas superpostas sobre o presente,” diz ele. “Lembro-me de ver um pintor, com camisa da marinha, calças brancas, cinto marrom, botas pretas, pintando a porta de um apartamento do outro lado da rua. Lembro da lona branca forrando os degraus de pedra, lembro do modo como a luz batia nele”.

O jornalista fica em dúvida. Será que ele não está inventando? Inventar, qualquer um inventa, se tiver imaginação e cara-de-pau. Burroughs também confessa não lembrar uma porção de coisas: o número de um apartamento onde morou, os filmes que viu num cinema (embora lembre do tapete desfiado do saguão). Leves imprecisões como estas dão um ar de honestidade ao restante.

Dias depois da entrevista, Anderson escreve para Burroughs perguntando do que ele se recorda sobre o encontro que tiveram, e relata: “Ele me respondeu com um texto de 1.200 palavras, citando frases específicas que dissemos ao cruzar uma esquina, e quais os carros que passavam na rua nesses momentos; qual a mão que usei para arrumar minhas anotações na mesa do restaurante; os nomes dos meus filhos; o design do meu relógio e do meu anel. Tendo estado lá durante cinco horas de conversação, achei seu relato, mesmo com uma ou outra palavra incorretas, muito persuasivo”. Memória total é talvez impossível, mas memórias precisas como a de Burroughs são provavelmente muito mais comuns do que se imagina. Só tomamos conhecimento delas quando, além da memória, o indivíduo tem também a capacidade de escrever livros. Nem sempre as duas coisas coincidem.