Artigos de Braulio Tavares em sua coluna diária no "Jornal da Paraíba" (Campina Grande-PB), desde o 0001 (23 de março de 2003) até o 4098 (10 de abril de 2016). Do 4099 em diante, os textos estão sendo publicados apenas neste blog, devido ao fim da publicação do jornal impresso.
sexta-feira, 5 de março de 2010
1749) A prosa coagulada (18.10.2008)
No Jornal Nacional, um repórter entrevistou um grupo de pessoas que ocupava irregularmente uma encosta de morro. Tinha havido um problema burocrático, e a Prefeitura os tinha autorizado a se instalar nessa área, condenada pela Defesa Civil por perigo de desabamento. Percebido o erro, a própria Prefeitura quis retirá-los, mas aí eles fincaram pé, naquela de “daqui não saio, daqui ninguém me tira”. O repórter, sabendo do que ocorria, foi entrevistar o líder dos moradores, e perguntou; “Seu Fulano, quem foi que autorizou vocês a se instalarem aqui?” O cara olhou o logotipo da Globo no microfone, olhou para a câmara, pigarreou, passou a mão no cabelo e disse; “Bem, isso aí, principalmente, tem o mérito da questão de ser propriamente a Prefeitura, né?...” Ficou claro que a resposta que ele queria dar era: “Foi a Prefeitura”. Por que não disse logo?
Direi por quê. Porque ocasiões especiais requerem (ou parecem requerer) um vocabulário especial. Para o favelado em questão, a ocasião era especialíssima – quantos de vocês, caros leitores, já foram entrevistados pelo Jornal Nacional? Eu, do alto de todo o meu currículo, nunca fui. E se chegar a ser um dia (“Sr. Braulio, como é essa emoção de ser o primeiro brasileiro a receber o Prêmio Nobel de Literatura?”) vou ter que lembrar do presente artigo, para não pigarrear, passar a mão no cabelo e dizer algo como: “É uma situação dialeticamente contraditória, um verdadeiro oxímoro para quem sempre eludiu os spotlights da fama e cortejou o lusco-fusco do semi-anonimato...”
Ocasiões especiais, principalmente quando nos sentimos observados por gente superior a nós, nos pressionam a usar uma linguagem paletó-e-gravata. Mesmo quando não a temos em nosso armário. Vai daí que acabamos, na velocidade do improviso, usando roupagens verbais que não são nossas, palavras de corres berrantes e que não combinam, construções sintáticas cujo defunto-era-maior e que acabam transbordando de si mesmas.
Microfone é um bicho danado para produzir essas reações. Página impressa (para quem nunca publicou) é outra. O indivíduo já leu tanta xaropada em linguagem pomposa, empolada, cravejada de pretensão, que se sente no dever moral de reproduzi-la, porque acha que é esse o idioma que se usa na palavra impressa. O cacoete torna-se ainda mais catastrófico quando o indivíduo em questão convive com professores-doutores, acadêmicos, juristas, tecnocratas... Porque há pessoas que vivem da linguagem pomposa. Fazem dela as púrpuras e as sedas de sua superioridade intelectual, quando a possuem, ou a cortina de fumaça que os protege, quando não.
Vemos isto também em textos literários de adolescentes, os quais se dividem em dois grupos: os que querem destruir a linguagem, e os que querem reproduzi-la mimeticamente, repetindo cada chavão que leram e cada jargão com que entraram em contato. Terão que se deslastrar muito, jogar muita coisa fora, até encontrarem a própria voz.
1748) Brasil 0x0 Colômbia (17.10.2008)
Ganha fora, empata aqui; ganha fora, empata aqui. É o iôiô da Seleção Brasileira, um sobe-e-desce constante que, bem ou mal, vai nos mantendo aos trancos e barrancos rumo à classificação para uma Copa do Mundo onde queira Deus que enfrentemos times mais fáceis de derrotar do que Colômbia e Bolívia. É o nosso karma jogando em casa, e a culpa não é de Dunga. Parreira se queixava, Filipão se queixava, Luxemburgo, Leão, todos se queixavam da mesma coisa. Quando os times sul-americanos vêm jogar aqui, fecham-se atrás numa retranca fanática, impiedosa, dando a impressão de que da linha divisória para trás existem 25 ou 30 jogadores com aquela camisa de cor diferente.
É um verdadeiro arrastão, cada vez que o Kaká ou Robinho pega na bola. Nada daqueles vastos espaços abertos fornecidos domingo passado pela ingênua seleção da Venezuela, que deixou todo mundo fazer o gol com o pé que mais lhe convinha. Aqui no Maracanã, amigos, cada vez que a bola chegava perto de uma camisa amarela apareciam dois ou três trombadinhas de camisa azul que cercavam, esbarravam, empurrava, acotovelavam, travavam, até arrancar a jogada pela raiz. Foram noventa minutos disto.
E noventa minutos de incompetência, se bem que para ser diplomático é melhor chamar de “falta de inspiração”. Competência todo mundo sabe que Fulano e Sicrano têm, mas diante da torcida brasileira baixa uma responsabilidade maior que tolhe as pernas da rapaziada e bloqueia seu raciocínio. Neste jogo de anteontem não aconteceu uma só jogada de brilho, uma só jogada de verdadeiro talento. E não estou me referindo às “pedaladas” ou às graçolas que tanto encantam os torcedores ingênuos. Me refiro a jogada de talento em busca do gol, jogadas coletivas rápidas com toques conscientes de primeira, ou lances individuais em que o jogador parte para o objetivo com lucidez e velocidade, executando o que vai fazer sempre um segundo antes da chegada do zagueiro.
Parece até que quando joga diante da torcida brasileira o jogador brasileiro se sente obrigado a pensar mais na jogada. Me lembro de uma história antiga ocorrida nas cadeiras cativas do velho Estádio Presidente Vargas. A defesa adversária falhou no grande círculo e o atacante do Treze fugiu sozinho com a bola na direção da área, avançou, avançou, avançou, e chutou em cima do goleiro. Um torcedor da velha guarda sentado ao meu lado desabafou: “O problema é que deu tempo de pensar. Pensou, perdeu”.
A Seleção Brasileira anda um pouco assim. Recebe a bola e pára pra pensar. Vupt! Surgem do nada três arranca-tocos e mandam a bola pro Norte e o brasileiro pro Sul. E entra aí, também, a falta de tempo para preparar jogadas ensaiadas, movimentações combinadas, para que nossos jogadores já saibam o que vão fazer antes mesmo da bola chegar aos seus pés. Do jeito que as coisas andam, daqui a pouco eles estão recebendo um passe, matando a bola, e pegando o celular para ligar pra Dunga: “E agora, professor?...”
1747) O texto impenetrável (16.10.2008)
(Ulysses, de Joyce)
Andei relendo, para postar no meu Blog, o texto “O poema incompreensível” (29.10.2004). Como já falei aqui, todos estes meus artigos se interconectam de acordo com um sistema que só eu sei e que Deus vem pesquisando há vários anos. Aproveito esta chance para qualificar melhor alguns conceitos.
Há textos impenetráveis porque são complexos. Vejam o inevitável exemplo dos romances de James Joyce. Não digo que são bons, nem que são bonitos, que são importantes, são úteis, não digo nada, mesmo que sejam isto tudo. Digo que são complexos, e quem não gostar de coisa complexa vire noutra esquina. Diante do mundo de Joyce talvez não caiba a palavra “impenetrável”, porque o número de seguidores que nele penetra, de mãos dadas, acendendo velas, é superior ao de muitas religiões organizadas. Mas o leitor entenderá o que estou dizendo.
Há obras impenetráveis por inesperadas. Simplesmente fazem as coisas de um jeito diferente, onde nossa mente não acerta a pousar o pé. Anos depois, uma nova geração dirá: “Mas o que tem isso de incompreensível? O que tem de vanguardista? O que tem de bom?”. Talvez seja o caso de Acossado, de Godard. Quando ele cortou de Belmondo fumando no quarto para Belmondo andando na rua, metade da França deu um salto na poltrona. Hoje, pestanas nem batem.
Existe a obra impenetrável por diferente. Isto se dá comigo quando vou ler muitos autores clássicos, alguns romancistas orientais, poetas da Roma Antiga... A obra passou por uma série de filtros heterogêneos (biografia, sensibilidade pessoal, influências literárias, influências locais) e esses filtros são tão distantes da experiência de um leitor brasileiro em 2008 que o resultado final fala uma língua que nos é estranha. Nada existe aí de genialidade ou de barroquismo. É a distância cultural colocando tantos decodificadores entre a obra e o leitor que este não mais a alcança.
E existe o impenetrável por incompetência. É o autor que gostaria de ser claro e de ser compreendido, mas não consegue. Escreve daquele jeito porque é daquele jeito que pensa, que sente, que raciocina. Pensa complicado, pensa incoerente, pensa fora de foco. A obra é um disjunto de pedaços conflitantes, de estímulos que produzem a reação inversa à que pretendiam, de textos que parecem dizer e nada dizem, porque lhes falta intenção no começo e resultado no fim. Imagino às vezes que muitos livros ruins que chegam a ser publicados devem isto à circunstância de terem pousado na mesa do editor misturados a outros muito piores. Quem foi jurado de concurso já teve a experiência de esbarrar numa quantidade tão grande de coisas péssimas que a primeira mediocridade bem-vestida é recebida com alívio, e apertada de encontro ao peito. No meio de trinta muros impenetráveis, uma porta que se abre em dobradiças bem azeitadas é um refrigério, é um antídoto contra o desconsolo. E cruzamos com gratidão essa porta, mesmo que não nos leve a lugar nenhum.
1746) Machado: “Um Homem Célebre” (15.10.2008)
São muitos os artistas insatisfeitos com o próprio sucesso, e quase todos por um mesmo motivo: queriam fazer sucesso, sim, mas com outra coisa.
Woody Allen perde meses inteiros filmando dramas familiares pelos quais ninguém se interessa; todos só o querem fazendo comédias. Conan Doyle fez tanto sucesso com os contos de Sherlock Holmes que acabou matando-o, porque o detetive eclipsava seus romances históricos e de ficção científica (até melhores, aliás, que os livros de Holmes). O público e as libras esterlinas lhe impuseram a ressurreição.
Vejam o Pestana, deste conto de Machado. Era doido para compor música clássica, mas só lhe saíam polcas, as quais, pela crueldade inocente da vida real, faziam enorme sucesso. Pestana sentava-se à noite ao piano, olhando a parede repleta de retratos a óleo dos grandes mestres, e tentava emular-lhes a inspiração; debalde. Acontecia-lhe o que acontece a todos nós: ficar duas ou três horas seguidas remoendo-se de ansiedade, sujeito a um sem-número de falsos arranques que não dão em nada, para afinal largar tudo em desespero, apagar a luz e ir dormir.
Pestana sofre com o fracasso, e sofre ainda mais com o sucesso, porque suas polcas vendem-se que é uma beleza – sim, amigo, isto se passa no tempo em que compravam-se partituras de uma canção, para reproduzi-la ao piano, e o compositor recebia direitos autorais. Mais que vendidas, são assobiadas na rua, termômetro infalível do sucesso popular.
Pestana faz de tudo para compor como Beethoven, Mozart ou Haydn, mas só lhe saem polcas, cada qual mais popular. Uma vez compôs para a esposa um Noturno. Quando o mostrou, sem dizer nada, ela perguntou-lhe se não era Chopin. Era. Diz o autor: “Pestana achara-o em algum daqueles becos escuros da memória, velha cidade de traições”.
Pestana se parece com aquele escritor best-seller a quem não basta vender dez milhões de livros: quer entrar para uma Academia, quer ser objeto de teses de doutorado. Quer, em suma, o reconhecimento do Andar de Cima, esta mítica cobertura do nosso mundo cultural, onde a mobília é bem mais rastaqüera do que a do andar térreo, mas dizem que a vista é melhor.
Não importa o sucesso do nosso mercadinho de secos-e-molhados ao rés-do-chão, sempre queremos ter o direito de freqüentar o andar superior da torre de marfim. Cobiçamos isso como eles, o de lá de cima, cobiçam o tilintar da nossa caixa registradora.
O conto de Machado registra um momento crucial na nossa cultura: o surgimento da Música Popular Brasileira. No seu tempo eram as polcas, as valsas, maxixes, lundus e cateretês. Eram as músicas que o povo dançava nas festas e assobiava nas ruas.
Pestana é essa espécie eternamente em-vias-de-extinção: o músico erudito, ou eruditamente formado. Ele continua vivo e a ver com angústia o crescimento dessa hidra de mil cabeças, a Música Popular, um samba-de-uma-nota-só, que ele contempla com desdém e (quando tem sorte) cultiva com remorso.
1745) Brasil 4x0 Venezuela (14.10.2008)
E lá vai a Seleção de Dunga, na sua gangorra de bons e maus resultados, sintoma clássico de um time que ainda não se encontrou e cujo destino depende de fatores fora de seu controle. No jogo de domingo passado, o fator benfazejo foi o clima de bravata com que os venezuelanos cercaram o jogo. Inspirados certamente no espírito do seu presidente, o fanfarrão Hugo Chávez, torcedores, imprensa e jogadores andaram bradando que iriam repetir a vitória por 2x0 que haviam conseguido no último confronto. Durante a execução do Hino brasileiro, ouviram-se vaias. Começado o jogo, o time da Venezuela lançou-se para a frente, de forma quixotesca. Quase faz um gol com dois minutos, mas aos 18 já tinha tomado três, e o jogo acabou ali.
O nivelamento por baixo que tem ocorrido no futebol criou uma situação curiosa. Os jogos mais fáceis do Brasil são os que ele disputa fora de casa, e os mais complicados são os do Maracanã, Morumbi, etc. Entende-se por quê. Antigamente o Brasil era invicto nas eliminatórias das Copas. Desfilava pelos gramados do continente, aplicando goleadas e bocejando. Agora a situação mudou, e times como Bolívia, Equador, Paraguai, até mesmo a Venezuela vão dormir cheios de esperança na véspera dos jogos. “Quem sabe (pensam) se não ganhamos do Brasil amanhã?” Quando o jogo é na casa deles, a imprensa se encarrega de lhes aplicar uma ampola dupla de ambição e de otimismo, falando em Pátria, condenando “el imperialismo brasileño...” Vai daí que, jogando em casa, todos eles se atiram ao ataque acreditando que vão ganhar de nós, e se esquecem de marcar Kaká, Robinho e Adriano. Putufo! Bola na rede.
Quando o jogo é aqui, claro, a coisa muda de figura, e eles voltam à velha retranca que os tem acompanhado e protegido há décadas. E é a vez do Brasil entrar em campo cercado pelo ufanismo, porque agora é a nossa imprensa e a nossa torcida que se arregimentam esperando o “espetáculo”, a goleada, a pedalada, o drible de placa... De vez em quando acontece. Geralmente, não. Ficam os nossos jogadores tolhidos, encolhidos, livrando-se da bola com medo de errar; ou então sassaricando para as câmaras e os olheiros europeus. Vêm daí alguns resultados constrangedores obtidos em casa, como o recente empate de 0x0 com a Bolívia.
O Brasil não deixará de se classificar para a Copa, ainda que seja atrás de Paraguai, Argentina & Cia. É até bom que sofra. É até bom que leve uma surrinha de vez em quando, para perder o salto-alto que o derrotou na Alemanha em 2006. Pena que tudo isto não esteja acontecendo com um técnico que infundisse mais segurança do que o estreante Dunga. Eternamente zangado, ele demonstra como técnico as qualidades e os defeitos que tinha como jogador. Sua Seleção é defensiva porque os técnicos de hoje não querem ganhar jogos, querem manter empregos. Torçamos por ele e por ela, porque não nos resta opção, mas o caminho da vitória é de cascalho, e os pés irão descalços.