Artigos de Braulio Tavares em sua coluna diária no "Jornal da Paraíba" (Campina Grande-PB), desde o 0001 (23 de março de 2003) até o 4098 (10 de abril de 2016). Do 4099 em diante, os textos estão sendo publicados apenas neste blog, devido ao fim da publicação do jornal impresso.
sexta-feira, 5 de março de 2010
1746) Machado: “Um Homem Célebre” (15.10.2008)
São muitos os artistas insatisfeitos com o próprio sucesso, e quase todos por um mesmo motivo: queriam fazer sucesso, sim, mas com outra coisa.
Woody Allen perde meses inteiros filmando dramas familiares pelos quais ninguém se interessa; todos só o querem fazendo comédias. Conan Doyle fez tanto sucesso com os contos de Sherlock Holmes que acabou matando-o, porque o detetive eclipsava seus romances históricos e de ficção científica (até melhores, aliás, que os livros de Holmes). O público e as libras esterlinas lhe impuseram a ressurreição.
Vejam o Pestana, deste conto de Machado. Era doido para compor música clássica, mas só lhe saíam polcas, as quais, pela crueldade inocente da vida real, faziam enorme sucesso. Pestana sentava-se à noite ao piano, olhando a parede repleta de retratos a óleo dos grandes mestres, e tentava emular-lhes a inspiração; debalde. Acontecia-lhe o que acontece a todos nós: ficar duas ou três horas seguidas remoendo-se de ansiedade, sujeito a um sem-número de falsos arranques que não dão em nada, para afinal largar tudo em desespero, apagar a luz e ir dormir.
Pestana sofre com o fracasso, e sofre ainda mais com o sucesso, porque suas polcas vendem-se que é uma beleza – sim, amigo, isto se passa no tempo em que compravam-se partituras de uma canção, para reproduzi-la ao piano, e o compositor recebia direitos autorais. Mais que vendidas, são assobiadas na rua, termômetro infalível do sucesso popular.
Pestana faz de tudo para compor como Beethoven, Mozart ou Haydn, mas só lhe saem polcas, cada qual mais popular. Uma vez compôs para a esposa um Noturno. Quando o mostrou, sem dizer nada, ela perguntou-lhe se não era Chopin. Era. Diz o autor: “Pestana achara-o em algum daqueles becos escuros da memória, velha cidade de traições”.
Pestana se parece com aquele escritor best-seller a quem não basta vender dez milhões de livros: quer entrar para uma Academia, quer ser objeto de teses de doutorado. Quer, em suma, o reconhecimento do Andar de Cima, esta mítica cobertura do nosso mundo cultural, onde a mobília é bem mais rastaqüera do que a do andar térreo, mas dizem que a vista é melhor.
Não importa o sucesso do nosso mercadinho de secos-e-molhados ao rés-do-chão, sempre queremos ter o direito de freqüentar o andar superior da torre de marfim. Cobiçamos isso como eles, o de lá de cima, cobiçam o tilintar da nossa caixa registradora.
O conto de Machado registra um momento crucial na nossa cultura: o surgimento da Música Popular Brasileira. No seu tempo eram as polcas, as valsas, maxixes, lundus e cateretês. Eram as músicas que o povo dançava nas festas e assobiava nas ruas.
Pestana é essa espécie eternamente em-vias-de-extinção: o músico erudito, ou eruditamente formado. Ele continua vivo e a ver com angústia o crescimento dessa hidra de mil cabeças, a Música Popular, um samba-de-uma-nota-só, que ele contempla com desdém e (quando tem sorte) cultiva com remorso.
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