Artigos de Braulio Tavares em sua coluna diária no "Jornal da Paraíba" (Campina Grande-PB), desde o 0001 (23 de março de 2003) até o 4098 (10 de abril de 2016). Do 4099 em diante, os textos estão sendo publicados apenas neste blog, devido ao fim da publicação do jornal impresso.
terça-feira, 2 de março de 2010
1735) O fantasma de Enoch Soames (3.10.2008)
(Enoch Soames)
“Enoch Soames” é um conto de Max Beerbohm (1872-1956) sobre um poeta romântico inglês do fim do século. Um desses caras meio patéticos, sem muito talento, que acreditam serem gênios incompreendidos. No conto, que transcorre em junho de 1897, Beerbohm diz estar um dia conversando com Soames num café quando o Diabo aparece aos dois e propõe a Soames (em troca de sua alma, claro) a chance de saber algo a respeito de sua glória futura. Ele o transportará para o Salão de Leitura do Museu Britânico dali a exatamente cem anos, para consultar os catálogos e ver de que maneira sua obra poética será lida pela Humanidade no futuro. Soames aceita. Quando retorna, está arrasado. A única menção ao seu nome nas enciclopédias diz que ele é um personagem fictício criado por um tal de Max Beerbohm. Aí surge o Diabo e o carrega.
No conto, o autor dá o dia exato (3 de junho de 1997) e o horário (a partir das 14 horas) da visita de Soames ao Museu. O conto tornou-se famoso, e apareceu em antologias como a Antologia de Literatura Fantástica organizada por Jorge Luís Borges, Adolfo Bioy Casares e Silvina Ocampo. E contos desse tipo, que projetam uma data específica no futuro, dão no leitor uma pequena cócega. O que será que vai acontecer, naquele dia, naquele lugar?
Li um artigo no The Atlantic (http://www.theatlantic.com/issues/97nov/teller.htm) assinado por Teller, da dupla de ilusionistas Penn & Teller. Diz ele que, fã do conto de Beerbohm, deu-se o trabalho de ir ao Salão de Leitura do Museu Britânico em 3 de junho de 1997, na data e na hora pré-fixados por Beerbohm, só para ver se Enoch Soames iria mesmo aparecer. No conto, Soames diz que as pessoas do futuro têm a cabeça raspada, e vestem uniformes idênticos, acinzentados. Os livros usam uma ortografia fonética, difícil de entender à primeira vista. Diz ele que sua roupa extravagante e seu chapelão de 1897 causaram grande curiosidade e inquietação nos presentes.
No artigo de Teller, ele diz ter encontrado leitores do conto de Beerbohm que vieram da Califórnia, de Cambridge e de outros lugares, simplesmente pela idéia maluca de presenciarem um fato “profetizado” por um escritor. Isto diz muito do modo como funciona nossa cultura. As pessoas sabem que se trata de um conto fantástico, mas agem como se aquilo pudesse acontecer, e sabem que não acontecerá. Até certo ponto – porque (a acreditar em Teller) um sujeito vestido exatamente como Enoch Soames surgiu na hora marcada, vestido a caráter, e reproduziu todos os gestos e comportamentos do personagem, tintim por tintim, de acordo com o conto. E sumiu.
Meditem, amigos, se Oscar Wilde não tinha razão ao dizer que a vida copia a Arte muito mais do que a Arte copia a vida. A aparição do “fantasma” de Soames é mais um exemplo de nossa obsessão em tornar real aquilo que era apenas texto. Como se a literatura fosse uma peça esperando para ser encenada por gente de carne e osso. E obrigando-nos a fazê-lo.
1734) Paul Newman (2.10.2008)
O primeiro filme que assisti com ele foi Marcados pela Sarjeta. Eu era tão pequeno, mas tão pequeno, que lia o título como “Marcados pela Sargenta”. Era a história de Rocky Graziano, um boxeador fracassado, ancestral de personagens como os de De Niro em O Touro Enfurecido e Stallone em Rocky. Newman morreu dias atrás, aos 83 anos, depois de uma carreira em ziguezagues, na qual trabalhou em grandes filmes e em numerosas besteiras, sem nunca perder a pose, o charme e a competência. Não era um grande ator, no sentido em que De Niro, Al Pacino e Dustin Hoffman são grandes atores: grandes impersonadores de psiquês que não são as suas. Newman era um só, fosse no papel de gangster, de cowboy, de político, de astronauta, de marido, de bebum. Mas esse um-só dele tinha (graças ao Actor’s Studio, e a uma inteligência muito acima da média) uma tal riqueza de nuances que 200 filmes (ou sei lá quantos fez) não esgotaram.
Newman era um ai-jesus do público feminino; moreno e de olhos verdes, gozava de uma unanimidade comparável à de Chico Buarque. Dava a quase todos os seus personagens uma aura de masculinidade descuidada, de quem é homem sem fazer força, e se comporta com as mulheres sempre no ponto médio ideal entre o rude e o delicado. Foi um galã másculo sem a truculência de seus contemporâneos Burt Reynolds, Burt Lancaster, Kirk Douglas. Foi galã e foi estrela com certo desdém por tudo isto. Era independente demais para o gosto de Hollywood, que ainda assim conseguiu espremê-lo até a última gota.
Para meu gosto, seus grandes papéis são as divertidas parcerias com Robert Redford (Butch Cassidy, Golpe de Mestre), sua densa e distanciada interpretação em Ausência de Malícia, seu detetive Lew Harper baseado nos livros de Ross MacDonald (The Moving Target, The Drowning Pool), o atormentado Billy the Kid de Um de nós morrerá. Fez, sem esquentar a cabeça, personagens meio improváveis como um ganhador do Prêmio Nobel de Literatura (The Prize), um cientista nuclear (Cortina Rasgada), um caçador de focas futurista (Quinteto). O último papel em que o vi foi há vinte anos, como o General de Fat Man and Little Boy.
Newman é um dos muitos atores/produtores/diretores que justificam a existência da máquina cinematográfica de Hollywood. Longe do que o cinema tem de melhor, é o que o cinema hollywoodiano conseguiu produzir de melhor. Era (pelo que se lê) um sujeito decente, ético, humanitário. Para o público, foi um ator correto, e um eventual diretor sem brilho mas com alma. Alguém a ser lembrado numa época em que os EUA são vistos pelo mundo (com razão) como uma Ditadura Financeira sustentada pelo maior exército da História, e o povo americano é visto (injustamente) como uma massa informe de caipiras, bairristas na política, provincianos na cultura e fundamentalistas na religião. O mundo de Newman é um reflexo do lado não-estragado da América.
1733) Machado: “Sales” (1.10.2008)
(Machado, por Borges)
Já falei aqui sobre os Sonhadores Pródigos na obra de Machado, personagens recorrentes que têm algo de gênio criativo e de maluco desorientado. Seus protótipos mais visíveis são o Quincas Borba (de Brás Cubas e do livro a que dá nome), e o Dr. Simão Bacamarte, de O Alienista.
Mentes inquisitivas, afeitas ao bordado mental de teorias abstrusas, que parecem menos abstrusas quando é o próprio autor quem as expõe, com gestos, eloqüência, verve, e a convicção íntima que anima os gênios e os doidos.
Outro desse grupo é o protagonista de “Sales”, conto pouco conhecido, publicado na Gazeta de Notícias em 1887. Sales não é propriamente um farol da ciência ou da filosofia, mas é também um sonhador, um compulsivo. Como diz Machado: “Cortava largo, sem poupar pano ou tesoura”. Animado por uma inesgotável energia interna, ele impressiona quem lhe está à volta.
É o caso de Melchior, senhor de engenho em Pernambuco, que se deixa arrebatar por uma idéia de Sales para a produção de açúcar e lhe cede em casamento a filha Olegária, ou “Legazinha”. Sales mergulha nos papéis, nos cálculos, mas o casamento o distrai, principalmente depois que traz a mulher para morar no Rio.
Legazinha se preocupa ao ver que o marido deixa logo para trás a idéia do açúcar e já vem com outra, uma taxação fixa a cada habitante da capital para provê-lo de pescado durante a Semana Santa: “O juro do capital, o preço das ações da companhia, porque era uma companhia anônima, número das ações, entradas, dividendo provável, fundo de reserva, tudo estava calculado, somado”.
Vê-se aqui que o talento de Sales difere dos demais em que se foca na administração e nas finanças, em vez de nas letras e artes. Sales é um empreendedor; um Lesseps ou Mauá em botão. O que lhe falta? Dinheiro não é, porque o dote de Legazinha o abastece com fartura.
Falta-lhe talvez sorte, ou fazer-se entender por uma humanidade bronca e vagarosa.
A companhia de pescado não dá certo, e Sales anuncia uma ida à Europa, para pesquisar a implantação de uma fábrica de rendas: “o Brasil dando malinas e bruxelas”.
Antes mesmo de embarcar, Sales já visita um Ministro do Império para mostrar-lhe outra idéia que acabara de ter: arrasar os prédios públicos do Campo da Aclamação e substituí-los por edifícios de mármore. O Ministro vacila ante o faraônico da proposta, balbucia que o governo não tem recursos...
Nada desanima Sales. É um plano atrás do outro, uma idéia gigantesca sendo eclipsada por outra ainda maior. O Brasil é pequeno para seu delírio criativo, e se o Brasil o é, o que dizer do dote de Legazinha? Em seis anos se evapora, e a apaixonada esposa, chorando às escondidas, vê-se preparando balas e compotas para vender e sustentar a casa.
Sales cai doente; em seu derradeiro delírio antes de expirar, tem uma visão de “milhares de criaturas humanas, com os braços erguidos ao ar, esperando o pão da verdade e da justiça... que ele ia... distribuir...”
1732) Quem é bom de memória (30.9.2008)
(Rádio Borborema)
Circula por emails uma “corrente” de campinenses saudosos, tipo Marcos Soares, relembrando lugares, pessoas e momentos de Campina antiga.
Melhor do que repassar a corrente é dividir aqui com meus leitores as lembranças da pipoqueira da Maciel Pinheiro no fim da tarde, do sorvete da Capri (a pequena, na descida da Cardoso Vieira rumo à Rodoviária, e depois a grande, perto da atual Biblioteca); os montes de lenha na frente das padarias ao amanhecer; o caldo-de-cana de Hipólito, perto do antigo Palacinho da Criança onde a gente ia ver bichos empalhados; a Feira de Fruta, parada obrigatória dos bacuraus madrugada adentro; as buates, que eram chamadas de “INPS” no tempo da luz negra, porque todo mundo ia de branco: Whiskyzito, Xique-Xique, Enche-Pança, Preto-e-Branco, Cartola.
Como esquecer figuras como Mazzaropi do picolé, Ciço porteiro do Alfredo Dantas, Luizinho do táxi, Seu Zé do Capitólio, Espanha da Flórida, Fuba da Casa Esporte, a quem comprávamos bola de couro para jogar no campo das Barreiras no Alto Branco.
Colegas que trabalharam comigo num século que já foi: Bira e Alexandre do áudio-visual da FURNe, Ana Marinho e João Carias da Reitoria, os fotógrafos do "Diário da Borborema" (Valdi Lira, Marcelo de Absalão, Nicolau), Seu Marco e Seu Pedrinho do Museu de Arte, Seu Lisboa motorista, Albanisa a Secretária Nota 10, o Capitão Asa, Biu Porteiro.
Personagens cosmopolitas como só Campina tem, como Janos Tatrai, o único técnico húngaro do Treze e do Campinense; o espanhol Prof. Peletero, autor de um “Projeto de uma unidade catalítica para o cracking do petróleo” e safoxonista amador; o Cônsul do Líbano, José Noujaim, representante da cultura islâmica na Serra; o Alemão do Chope.
Professores de gerações inteiras como D. Zefinha, D. Wanda, D. Otília, Anésio Leão, Prof. Almeida e sua filha D. Nora, Gabriel Agra, Padre Maia, Zé do Bode, Celso Pereira, Rubens Lima, Prof. Adelmo.
Sem falar nas barracas da Festa da Mocidade, e as mensagens sonoras do Parque Lima, as paradas do Dia 7 que eram encerradas por um monte de caras andando a cavalo, as vitrines da Maciel Pinheiro cheias de algodão e cetim vermelho na época do Natal.
Os pirulitos cônicos enrolados em papel de embrulho e enfiados nos buracos da tábua; o algodão-de-açúcar (que o resto do Brasil chama algodão-doce), o raspa-raspa de gelo cercado por garrafas coloridas, a maquininha de descascar laranja na manivela, o cachorro-quente “comeu-morreu” nos jogos noturnos do PV.
Cardápio raro dos bêbos: o “tradicional” do Cearense (servido por Seu Ermírio, “Buda”), o “rato” da Riviera, a costela do Castelo, a cabeça-de-galo do Corredor da Morte.
Os cartazes anunciando filmes ou futebol, pintados à mão e amarrados nos postes; a camionete de Zé Américo II (“bola vai, bola vem; bola vem, bola vai”), a arte de “botar voz” no Calçadão.
A banca de Henrique; o fiteiro de Toín Trujão; o sebo de Câmara; a troca de gibis de capa rasgada nas matinais de um domingo que até hoje não passou.
1731) Machado: o Sonhador Pródigo (28.9.2008)
É um personagem que aparece de forma recorrente nos contos de Machado. Tem tintas de cientista louco, como o Dr. Bacamarte de “O Alienista”.
São, todos eles, intelectuais de província com sua típica mistura de ingenuidade, megalomania e semi-informação. Enredam-se em teorias abstrusas, fazem descobertas espantosas a que ninguém dá atenção, reinventam a roda e a pólvora. Monomaníacos, excêntricos, simpáticos, todos com um grau a mais de intensidade mental e um grau a menos de pés-no-chão.
Como o Dr. Jeremias Halma de “O Lapso” (em Histórias sem data, 1884): “Viajara muito, sabia toda a química do tempo e mais alguma; falava correntemente cinco ou seis línguas vivas, e duas mortas. Era tão universal e inventivo, que dotou a poesia malaia com um novo metro, e engendrou uma teoria da formação dos diamantes”.
O Dr. Jeremias em nada fica a dever ao Cônego Fulgêncio, de “Ex Cathedra” (no mesmo livro): “Um dia, acordando com a idéia de melhorar a condição dos turcos, redigiu uma constituição, que mandou de presente ao ministro inglês, em Petrópolis. De outra ocasião, meteu-se a estudar nos livros a anatomia dos olhos, para verificar se realmente eles podiam ver, e concluiu que sim”.
Em “Um esqueleto”, alguém nos refere o Dr. Belém: “Compusera um romance, e um livro de teologia, e descobrira um planeta. (...) Veio à corte para imprimir os dois livros, mas não achou editor e preferiu rasgar os manuscritos. Quanto ao planeta comunicou a notícia à Academia de Ciências de Paris; lançou a carta no correio e esperou a resposta; a resposta não veio porque a carta foi parar a Goiás”.
Ria, leitor, porque são desgraças fictícias; mas cesse de rir quando lembrar os destinos reais de Hercules Florence, que inventou a fotografia no Brasil, e do Padre Landell de Moura, que inventou a telefonia sem fio. Nem mesmo no Brasil há quem os conheça.
O protagonista de “A Idéia do Ezequiel Maia” (na Gazeta de Notícias, 1883) era capaz de abstrair-se do próprio corpo e fazer viagens mentais: “No quarto mês empreendeu um estudo que lhe comeu cinqüenta e seis dias: achar a filiação das idéias, e remontar à primeira idéia do homem. Escreveu sobre este assunto uma extensa memória, em que provou a todas as luzes que a primeira idéia do homem foi o círculo”.
Igualmente infatigável é o Xavier de “O Anel de Polícrates” (em Papéis Avulsos, 1882): “Era um endiabrado, um derramado, planeava todas as cousas possíveis, e até contrárias, um livro, um discurso, um medicamento, um jornal, um poema, um romance, uma história, um libelo político, uma viagem à Europa, outra ao sertão de Minas, outra à lua, em certo balão que inventara, uma candidatura política, e arqueologia, e filosofia, e teatro, etc., etc. Era um saco de espantos”.
São os criadores sem foco, os talentosos sem método, os inspirados sem persistência. Os milhares de gênios em botão que se ressecam e estiolam na periferia do capitalismo.