terça-feira, 2 de março de 2010

1735) O fantasma de Enoch Soames (3.10.2008)



(Enoch Soames)

“Enoch Soames” é um conto de Max Beerbohm (1872-1956) sobre um poeta romântico inglês do fim do século. Um desses caras meio patéticos, sem muito talento, que acreditam serem gênios incompreendidos. No conto, que transcorre em junho de 1897, Beerbohm diz estar um dia conversando com Soames num café quando o Diabo aparece aos dois e propõe a Soames (em troca de sua alma, claro) a chance de saber algo a respeito de sua glória futura. Ele o transportará para o Salão de Leitura do Museu Britânico dali a exatamente cem anos, para consultar os catálogos e ver de que maneira sua obra poética será lida pela Humanidade no futuro. Soames aceita. Quando retorna, está arrasado. A única menção ao seu nome nas enciclopédias diz que ele é um personagem fictício criado por um tal de Max Beerbohm. Aí surge o Diabo e o carrega.

No conto, o autor dá o dia exato (3 de junho de 1997) e o horário (a partir das 14 horas) da visita de Soames ao Museu. O conto tornou-se famoso, e apareceu em antologias como a Antologia de Literatura Fantástica organizada por Jorge Luís Borges, Adolfo Bioy Casares e Silvina Ocampo. E contos desse tipo, que projetam uma data específica no futuro, dão no leitor uma pequena cócega. O que será que vai acontecer, naquele dia, naquele lugar?

Li um artigo no The Atlantic (http://www.theatlantic.com/issues/97nov/teller.htm) assinado por Teller, da dupla de ilusionistas Penn & Teller. Diz ele que, fã do conto de Beerbohm, deu-se o trabalho de ir ao Salão de Leitura do Museu Britânico em 3 de junho de 1997, na data e na hora pré-fixados por Beerbohm, só para ver se Enoch Soames iria mesmo aparecer. No conto, Soames diz que as pessoas do futuro têm a cabeça raspada, e vestem uniformes idênticos, acinzentados. Os livros usam uma ortografia fonética, difícil de entender à primeira vista. Diz ele que sua roupa extravagante e seu chapelão de 1897 causaram grande curiosidade e inquietação nos presentes.

No artigo de Teller, ele diz ter encontrado leitores do conto de Beerbohm que vieram da Califórnia, de Cambridge e de outros lugares, simplesmente pela idéia maluca de presenciarem um fato “profetizado” por um escritor. Isto diz muito do modo como funciona nossa cultura. As pessoas sabem que se trata de um conto fantástico, mas agem como se aquilo pudesse acontecer, e sabem que não acontecerá. Até certo ponto – porque (a acreditar em Teller) um sujeito vestido exatamente como Enoch Soames surgiu na hora marcada, vestido a caráter, e reproduziu todos os gestos e comportamentos do personagem, tintim por tintim, de acordo com o conto. E sumiu.

Meditem, amigos, se Oscar Wilde não tinha razão ao dizer que a vida copia a Arte muito mais do que a Arte copia a vida. A aparição do “fantasma” de Soames é mais um exemplo de nossa obsessão em tornar real aquilo que era apenas texto. Como se a literatura fosse uma peça esperando para ser encenada por gente de carne e osso. E obrigando-nos a fazê-lo.

2 comentários:

  1. Interessante como o futuro costuma ser representado nos extremos da utopia ou distopia e muito mais frequentemente no último (especialmente fora dos livros de ficção científica).

    Será que há algum exemplo de futuro literário que escape da padronização geral (uniformes e cabeças raspadas) ou do éden recuperado (sexo livre e riqueza universalizada)?

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  2. O próprio Teller quem elaborou esse evento. Bolou um truque de mágica ainda rapaz e esperou 37 anos realizá-lo no museu.

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