Artigos de Braulio Tavares em sua coluna diária no "Jornal da Paraíba" (Campina Grande-PB), desde o 0001 (23 de março de 2003) até o 4098 (10 de abril de 2016). Do 4099 em diante, os textos estão sendo publicados apenas neste blog, devido ao fim da publicação do jornal impresso.
sábado, 6 de fevereiro de 2010
1619) “I Semana do Cangaço” (21.5.2008)
Realiza-se a partir de 4 de junho, em Aracaju, a I Semana do Cangaço, com oficinas, palestras e exposições sobre o Cangaço nordestino. (Informações: www.semanadocangaco.blogspot.com). A data foi escolhida em comemoração ao aniversário de Lampião, e 2008 marca os 70 anos da morte do bandoleiro e de sua mulher Maria Bonita, assassinados pela polícia numa gruta em Angicos.
O cangaço ainda é um fenômeno contraditório. Para uma parte do Brasil, os cangaceiros eram meros criminosos, não se distinguindo muito dos traficantes de drogas de hoje em dia. Havia a diferença (essencial, temos que reconhecer) de que não traficavam drogas, mas de resto seu perfil era semelhante: aliavam-se à população desassistida, tinham mais mobilidade e melhor armamento do que as tropas do governo, impunham um sistema paralelo de justiça baseado nas armas, e nas venetas pessoais de seus líderes. Para muitos nordestinos, contudo, a imagem do cangaço não está associada ao crime nem à crueldade, e sim à coragem pessoal, à rebeldia, à luta contra os poderosos, à independência individual. Uma parte da intelectualidade de esquerda chegou a compará-los, com insistência, aos guerrilheiros revolucionários de muitos países latino-americanos. É um caso típico de uma Lenda Heróica que idealiza um fenômeno humano contraditório e trágico. Como qualquer herói de qualquer civilização.
Um dos melhores livros sobre o cangaço (para alguns, o melhor de todos) é Guerreiros do Sol, de Frederico Pernambucano de Melo (Ed. Girafa). Entre numerosos outros aspectos, a rica análise de FPM propõe uma distinção entre o que ele chama de “cangaço de vingança” e “cangaço meio-de-vida”. Nos filmes, romances e cordéis o cangaceiro é geralmente alguém que entra para o banditismo para vingar um crime contra sua família, crime que a Justiça da época (manipulada pelos poderosos) deixara impune. FPM observa o fato de que, enquanto alguns cangaceiros abandonam o cangaço logo após a consecução dessa vingança, outros permanecem nele por considerar que estão muito melhor assim do que na vida anterior. E existem casos de vinganças que são longamente proteladas, como se o cangaceiro preferisse poupar o desafeto para poder adiar indefinidamente o momento de largar a vida aventurosa e retornar (caso isso fosse possível) à vida pacata de vaqueiro ou lavrador.
Alguém dirá: “Mas quem diabo preferiria viver caçado à bala, correndo pelas caatingas, sujeito a traições, emboscadas, etc., em vez de viver tranqüilo e em paz?” A resposta é complexa, mas assim como existe gente pacata (como eu), existe gente que gosta de se envolver em situações violentas e perigosas, pela “adrenalina” que elas produzem. Além do mais, FPM lembra que o cangaço bem administrado (roubos, proteção de coronéis, etc.) podia ser lucrativo, e proporcionava poder, notoriedade, fama e ganhos patrimoniais, no contexto de “uma sociedade economicamente estagnada e de baixa mobilidade vertical”.
1618) O dominó de John Mayall (20.5.2008)
Depois de ver o show de Bob Dylan em março, fui agora ver John Mayall & The BlueBreakers no Canecão (eu agora só vejo artistas da terceira idade). Começa o show. Mayall entra no palco empunhando sua guitarra demolidora? Coisa nenhuma. Entra tocando em pé, atrás de um tecladinho-yamaha igualzinho ao que Dylan tocou em seu show. O que me sugere que o teclado é o instrumento dos ex-guitarristas velhinhos. Uma espécie de dominó-na-praça para aposentados de pijama.
O que não é bem o caso. Mayall (que vi ao vivo pela primeira vez) não é mais aquele guitarrista feroz de cabelos longuíssimos e barbicha-de-bode. Estava de calça branca, camisa estampada, óculos de grau iguais aos meus, e uma discreta e ondulada cabeleira branca que em alguns momentos o tornava parecido com Jomard Muniz de Britto. A voz não tem mais a mesma potência de outrora, mas vai crescendo e se encorpando ao longo do show. Ele toca teclado com competência, guitarra com dedos levemente enferrujados. É na gaita que ele dá um verdadeiro baile, em “Burnin’ Bridges” (acho que é esse o título) e outras canções. Aos 74 anos (fará 75 em novembro) ele transborda alegria de viver e de tocar.
Gerações inteiras de guitarristas cresceram sob a supervisão de Mayall, entre eles Eric Clapton e Mick Taylor. Se cada ex-discípulo seu fosse convocado para um show, os três dias de Woodstock não teriam agenda que os coubesse. Ele é menos um grande instrumentista do que um formador de grandes instrumentistas, e nesta última função se assemelha a músicos como Hermeto Pachoal. O sujeito entra para a banda dele vestibulando, e sai PhD.
É o caso de Buddy Whittington, o guitarrista barrigudinho e de cavanhaque que é o ponto alto do show de Mayall. Toca com concentração, seriedade, emoção e fluência. Sem fazer muitas caras e bocas, tem nas pontas dos dedos toda a sensibilidade do blue. Vê-lo tocar é fascinante, porque acompanhamos seus solos longos, velozes, complexos, uma progressão sinuosa e surpreendente de melodias que nunca vão por onde esperamos mas sempre retornam ao caminho por onde vinham, levando-nos com elas. No fim de cinco minutos de solo, se a gente passar um corretor ortográfico vai ver que não faltou uma nota sequer. É de arrepiar ouvir Whittington cantando (e solando) “Help me through the day, help me through the night… Babe, you make me realize you’re my woman”.
O blues é tristeza negra concentrada, e altivez negra mais concentrada ainda. Uma forma de música cadenciada, implacável, que nos adverte do caráter irrevogável de cada gesto na vida, e de que é preciso estar à altura das nossas próprias conquistas e das nossas tragédias. Aceitação estóica do sofrimento e busca também estóica dos lampejos de felicidade a que qualquer um tem direito. O blues é como o petróleo, algo que está se auto-destilando há dez milhões de anos, e que de repente brota não se sabe de onde, e começa a arder em nossas mãos.
1617) O mistério do Isomorfismo Quântico (18.5.2008)
(Subway, de George Tooker)
A Ciência está apenas começando a dissecar este fenômeno, mas sua existência já foi comprovada de forma indubitável. As primeiras pistas a seu respeito surgiram em certos laboratórios experimentais de Física Quântica. As experiências consistem, basicamente, em criar em diferentes partes do laboratório (ou mesmo em laboratórios distantes, p. ex., em países diferentes) aquilo que os cientistas chamam de “espelhos topológicos”: micro-regiões do espaço às quais são impostas as mesmas condições eletro-magnéticas, gravitacionais, etc. Ou seja, são dois espaços praticamente iguais um ao outro, só que situados a quilômetros de distância.
Os experimentadores descobriram que quando uma partícula (por exemplo, um elétron) desaparece num desses espaços, uma partícula semelhante surge no outro, ao mesmo tempo – como se os dois espaços estivessem em comunicação entre si (o que em termos da Física Clássica é impossível) e o segundo fosse uma continuidade do primeiro. Daí a expressão “espelho topológico”, que aliás é inexata, porque na verdade o segundo espaço não é um mero reflexo do outro, é uma cópia igual ao original, um clone, uma duplicação.
Isto leva a crer que existe, em nosso Universo, uma tendência de que dois espaços “iguais” fiquem instantaneamente unidos a partir do instante em que o segundo se produz. Não se sabe como essa união é feita, porque tais espaços podem estar separados por milhões de quilômetros, mas tudo que se fizer acontecer num deles também acontece no outro, sem que haja tempo para qualquer sinal, qualquer “aviso” ser transmitido de “A” para “B”. Lembrem-se que a velocidade da luz é a velocidade máxima no Universo, e em distâncias muito grandes mesmo a Luz leva horas, dias, anos para chegar.
A conseqüência prática mais estarrecedora desse paradoxo é o fato – só percebido nas últimas décadas – de que essa comunicação também se dá entre espaços isomórficos situados no mundo “macro”, como o chamam os cientistas: o mundo dos objetos e das pessoas, o mundo em que vivemos. Os primeiros indícios foram percebidos em shopping centers, que, como se sabe, são todos construídos segundo modelos limitados e idênticos. Ao que parece, a arquitetura dos shoppings tende a criar essa estrutura de espaços rigorosamente iguais, onde os fenômenos são submetidos às mesmas forças eletromagnéticas, gravitacionais, etc.
Como no nosso mundo os objetos são maiores, os fenômenos são mais difíceis de se repetir. Mas já há registros inequívocos de que pessoas que entraram num Shopping em Recife emergiram, segundos depois, num ponto idêntico de um shopping em São Paulo, e assim por diante. Há pelo menos um caso confirmado de teletransporte internacional, de uma senhora de Dallas (Texas) encontrada em 2006 no Shopping Iguatemi, de Campina Grande, sem saber como foi parar ali. São novas e excitantes descobertas da ciência, sobre as quais aguardamos, ansiosamente, maiores informações.
1616) Os Mutantes I (17.5.2008)
Ando meio desligado, sem prestar atenção ao mundo em volta, escutando depois de muitos anos o primeiro disco dos Mutantes (calma, fãs-de-caderneta-em-punho, sei que a música citada no início é do terceiro).
Esse disco bouleversou meu juízo assim que saiu, em 1968. Lembro que numa mesma semana eu comprei um LP de Sidney Miller e outro de Baden Powell, e meu irmão Pedro comprou o primeiro de Caetano e o primeiro dos Mutantes. (Como se vê, eu era MPB tradicional, e o Tropicalismo se infiltrava através dos mais jovens).
Eu gostava dos Mutantes, mas implicava com o excesso de referências aos Beatles. O riff de guitarra distorcida em “Minha Menina” remetia aos Rolling Stones (“Satisfaction”) e aos Beatles (“Think for yourself”). O vocal de “Le premier bonheur du jour” lembrava “Michelle”; o “Senhor F” me parecia um equivalente ao “Mr. Kite”. A cítara de “Bat Macumba” vinha diretamente de George Harrison, assim como o trumpete em “Panis et Circensis” era citação de “Penny Lane”.
E por aí vai. Eu nada tinha contra os Beatles, mas demorei a perceber, por trás da obviedade das citações, o que o trio paulista tinha de criativo e novo.
Meus brios patrióticos foram arrefecendo. Eu tinha quase a mesma idade dos Mutantes, gostava dos Beatles tanto quanto eles. Resolvi considerar que a música deles, por excêntrica que fosse, não vinha para extinguir a música de Baden e Sidney Miller, mas para ficar ao lado dela. Eu poderia ouvir as duas sem remorsos. E é o que tenho feito nos últimos trinta anos.
Os Mutantes faziam versão para John Philips (dos “Mamas and Papas”) e cantavam Françoise Hardy em francês. Tinham canções surrealistas como “Ave Gengis Khan” e “Senhor F”. Sua gravação de “Baby” era melhor que a de Gal Costa, e sua gravação de “Batmacumba” era melhor que a de Gil. E canções como “O Relógio” e “Trem fantasma” não se pareciam com nada que eu já tivesse ouvido.
Eu escutava cada faixa conscienciosamente e ficava riscando alternativas: “Samba, não é. Bolero, não é. Marcha-rancho, não é. Baião, não é. Rock, não é. Tango, não é.” Meu repertório de ritmos mostrava-se inútil para definir aquilo, e foi nessa época que eu comecei a desconfiar dessa mania de definir as canções pelo nome de um “ritmo”.
Os Mutantes faziam furor, mas não eram unanimidade. O pessoal do Pasquim caía de pau em cima deles, dizendo que faziam um humor “ginasiano”. Outros diziam que as melhores coisas nos discos deles não eram deles, eram do arranjador Rogério Duprat.
Seus três primeiros discos (para mim os melhores) não se assemelhavam a nada que já tivesse aparecido na música brasileira, e mesmo dentro da novidade maior que era o Tropicalismo eles eram diferentes. O Tropicalismo era sério, era ideológico, tinha crítica social, tinha ambições vanguardistas, dialogava com os intelectuais.
Os Mutantes, não. Sua música não era Jovem Guarda, era uma espécie de Jovem Vanguarda, onde conviviam o Humor, a Diversão e a Invenção.
1615) “Down by Law” (16.5.2008)
Down by Law (1986) foi um dos grandes filmes cult do Rio de Janeiro na década de 1980. Exibido no Estação Botafogo, tornou-se na mesma hora o queridinho dos cineclubistas locais, com sessões lotadas em todos os horários, críticas entusiasmadas, e até mesmo o surgimento daqueles pequenos rituais de fãs – pessoas reunidas na calçada recitando ao pé da letra, em voz e alta e coletivamente, os diálogos do filme, principalmente a famosa cena trocadilhesca em que os personagens andam em círculo na cela da prisão gritando: “I scream, you scream, we all scream for ice-cream!”. A paixão pelo filme era tão grande que o distribuidor foi proibido de traduzir-lhe o título (que aliás vem da gíria dos músicos de jazz: “down by law” significa ter pago suas dívidas, merecer o que conseguiu). Foi preciso dar ao filme a tradução fonética: “Daunbailó”.
É outro dos filmes minimalistas de Jim Jarmusch, como o Estranhos no Paraíso que comentei dias atrás. Mais uma vez três protagonistas que se encontram meio por acaso, não morrem de amores uns pelos outros mas dão um jeito de conviver e até de se divertir juntos. Desta vez são três homens. John Lurie faz um cafetão atrapalhado que se deixa pegar numa armadilha montada por um rival. Tom Waits faz um DJ desempregado que aceita um trabalho onde há visivelmente algo de ilegal. Os dois são presos e acabam na mesma cela. Depois chega ali um italiano que fala inglês macarrônico, preso por homicídio involuntário. É Roberto Benigni, que 11 anos depois ganharia o Oscar com A Vida é Bela. Os três conseguem escapar da prisão, fogem por entre os pântanos de Louisiana, e no fim se separam.
Grande parte dos méritos do cinema de Jarmusch se dá no equilíbrio entre as situações banais sugeridas pelo roteiro e a sensação permanente de instabilidade e imprevisibilidade produzida pela interpretação dos atores (que improvisam com freqüência). Além do mais, Jarmusch consegue, sabe Deus como, criar interesse numa história na qual fica claro, desde o início, que “suspense” é palavra tabu. Seus filmes não são aquela vertiginosa narrativa norte-americana que nos empurra para diante, sequiosos para saber o que acontecerá em seguida. Em seus filmes não há futuro, não há expectativa, não há mistério a ser resolvido ou objetivo a ser alcançado. São puro presente, puro instante. Não sabemos o que os personagens estão pensando. Não sabemos como vão agir ou reagir. Cada minuto de filme tem a mesma imprecisão de um minuto de vida.
O histrionismo álacre e ingênuo de Benigni, comediante profissional, contrasta com o naturalismo da interpretação dos músicos John Lurie (enfastiado, impaciente, sarcástico) e Tom Waits (blasé, áspero, soturno). Em momento algum os três dão a impressão de se gostarem, mas convivem juntos, fogem juntos da prisão (a fuga mais fácil da história do Cinema), separam-se na estrada sem frases bonitas e sem violinos ao fundo, num desfecho que lembra Cinema, Aspirina e Urubus.