Artigos de Braulio Tavares em sua coluna diária no "Jornal da Paraíba" (Campina Grande-PB), desde o 0001 (23 de março de 2003) até o 4098 (10 de abril de 2016). Do 4099 em diante, os textos estão sendo publicados apenas neste blog, devido ao fim da publicação do jornal impresso.
quarta-feira, 29 de setembro de 2010
2359) A estética do Meu Passado Me Condena (29.9.2010)
O título brasileiro deste dramalhão de Basil Dearden (Victim, 1961) virou clichê.
Títulos como Assim caminha a humanidade, Suplício de uma saudade ou Adeus às ilusões, que não têm nada a ver com o título em inglês do filme, são produto da imaginação das distribuidoras nacionais, e acabam se tornando pequenas jóias onde se cristalizam idéias fundamentais do gênero folhetinesco.
No folhetim há sempre alguém que tem um passado misterioso, uma culpa escondida, um esqueleto no armário, um conflito mal resolvido, uma identidade deixada para trás.
Em inglês há uma expressão sintomática. Quando se diz “he is a man with a past”, “ele é um homem com um passado”, subentende-se logo que é um passado especial e problemático, um passado que (como disse indelevelmente William Faulkner) até hoje não passou.
Já vimos isto no horário nobre, não é mesmo?
É o filantropo de cabelos brancos que de repente alguém reconhece como um traficante de escravos quando tinha cabelos pretos.
É a dama de sociedade que numa festa é reconhecida pelo frequentador de um bordel.
É o morador obscuro de uma pensão cuja foto aparece nos postes da rua num cartaz de “Procura-se”.
Todo mundo tem um passado que é como um fogo de monturo: parece extinto mas continua a fumegar lá dentro, esperando o momento certo de fumegar cá fora. Nas telenovelas ou nos romances surgem a todo instante homens incorruptíveis ou esposas de honestidade a toda prova que, não obstante, estremecem de maneira inexplicável ao escutar o nome de uma cidade, ou à simples menção de um episódio rumoroso ocorrido no passado. Por que esse susto? O que têm eles a esconder?
O romance policial, que tanto deve ao folhetim, vive em grande parte deste recurso dramatúrgico básico, o de que todo indivíduo consiste em camadas de tempo superpostas, de tal modo que mesmo por baixo do mais imaculado dos presentes pode estar se abrigando um passado infestado de cupins ou cânceres.
Ninguém é perfeito, e ainda menos aqueles que parecem ansiar por uma perfeição pública, por uma reputação inatacável.
Cedo ou tarde o beneficente milionário é assassinado em sua biblioteca, e descobrimos que quem lhe cravou a espátula nas costas foi o homem cuja vida ele arruinou na Tasmânia ou em Bornéu.
Cedo ou tarde o vagabundo ou mendigo encontrado morto nos arredores da mansão é identificado como um reles chantagista que vivia a extorquir a família inteira, sob a ameaça de revelar as atividades da matriarca durante a ocupação nazista em Paris.
Todo mundo tem um passado que preferiria que não viesse à tona, e muitos são capazes de chegar ao crime para que isto não aconteça. No folhetim ocorre às vezes que o vilão mais repugnante acabe se revelando um homem de princípios nobres, que procedia daquela forma por estar preso a um juramento ou um compromisso. Ocorre mais frequentemente, porém, que um indivíduo impoluto se revele vilão. O passado mais condena do que absolve.
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