domingo, 29 de agosto de 2010

2333) A estética do Ah Se Eu Soubesse (29.8.2010)



Entre as frases clássicas do folhetim, do melodrama e da telenovela, um lugar de honra deve ser reservado para esta. 

Tornou-se tão famosa (e tão próxima da nossa vida real!) que os atores e atrizes mais calejados a dispensam. Diante da evidência estarrecedora da catástrofe, ou da revelação brutal de uma tragédia irreversível, de tudo aquilo que por um fio de cabelo não foram capazes de evitar, um ator como Anthony Hopkins ou uma atriz como Fernanda Montenegro deixam implícita a frase famosa. Afastam os olhos, olham para longe através da janela e suspiram. Está dito tudo. 

O “Ah, se eu soubesse!” é a lamentação póstuma de quem em certo momento teve o poder de guiar os acontecimentos numa direção melhor mas não o fez, ou por desconhecimento mesmo, ou por erro de avaliação, ou por ter dado prioridade a outras linhas de ação. 

Depois que a tragédia se desencadeia, não há mais como voltar atrás. Pode-se simplesmente imaginar como teriam sido as coisas, “se eu soubesse que ia resultar naquilo”. 

O romance policial de influência gótica celebrizou o clichê da heroína que assume riscos desnecessários, riscos que nenhuma pessoa sensata assumiria. O cinema reciclou um milhão de vezes essa personagem. É a fórmula que, segundo o crítico Bill Pronzini, foi batizada pela editora Lee Wright como “A Heroína Idiota no Sótão”. É aquela personagem que, ameaçada por um maníaco homicida, tranca-se em casa à noite, mas, ao ouvir um barulho suspeito no sótão, acende uma vela e sobe até lá para ver do que se trata. Por que? Porque se não o fizer não tem história, e fazendo assim angaria a identificação das pessoas (sempre são muitas) que fariam a mesma besteira. 

Ogden Nash é talvez o mais divertido poeta satírico norte-americano, especialista em poemas rimados AABBCCDD..., com linhas longuíssimas em verso livre que bem ou mal acabam desembocando na rima proposta. 

Ele publicou em 1940 um poema intitulado Don’t Guess, Let me Tell You (“Não adivinhe, deixe que eu lhe diga”) em que batizou esse subgênero policial como “The H.I.B.K. School”, a escola do “Had I But Known”, onde ele diz: 

Às vezes é Ah, Se Eu Soubesse que terrível segredo estava oculto por trás daquela fachada sorridente, eu jamais teria cruzado aquele portão; 
outras vezes é Ah, Se Eu Soubesse então o que eu sei agora, eu poderia ter salvo pelo menos três vidas contando ao Inspetor a conversa que ouvi através daquele buraco feito casualmente no chão. 

Como se vê, é um ingrediente para ser usado com moderação, como aquelas especiarias que em pequena quantidade acrescem sabor, mas quando postas com mão pesada dão a quem experimenta o prato a desconfiança de que aquilo está ali para disfarçar alguma coisa estragada. 

Porque um personagem que exclama “Ah, se eu soubesse!...” geralmente sabia o que lamenta ignorar. E talvez soubesse também que revelando aquilo iria encurtar o romance em 200 páginas e a telenovela em 80 capítulos.




sábado, 28 de agosto de 2010

2332) Tratado Glauco de Versificação (28.8.2010)



Poucas pessoas entendem tanto de técnica do verso quanto o poeta paulistano Glauco Mattoso, ex-editor do “Jornal Dobrabil” nos anos 1970. Glauco celebrizou-se como uma vanguarda-de-um-homem-só, de uma marginalidade escancarada e escandalosa. Em seu trabalho misturam-se a impudência gay e o datilografismo como linguagem verbivisual, o concretismo e a coprofagia, o rock skin-head e o anarquismo político, o sadomasoquismo e a desconstrução metalinguística, o soneto impecável e o pecado mortal. Pode ser que em algum lugar remoto do mundo (no Butão, na Bósnia, no Camboja) exista algum poeta com fórmula parecida. No Brasil não tem.

Acaba de sair, pela editora Annablume (São Paulo) o Tratado de Versificação em que Glauco exporta para o papel impresso o copioso material teórico, exemplificado, que já estava disponível em seu saite. O nome diz tudo: é um tratado ensinando a identificar, reconhecer e utilizar as possibilidades métricas do verso. Ouso afirmar que a maioria dos poetas sérios das nossas Academias de Letras não conhece essa técnica tão bem quanto o ceguinho punk-escatológico de Vila Mariana. Eu, que também não conheço, fico feliz com a publicação do livro, porque sou gutemberguiano e paleozóico, e de agora em diante, quando tiver uma dúvida técnica (“Minha Nossa Senhora, isto aqui é um dáctilo ou um espondeu? É um heróico puro ou um alexandrino andrógino?”), basta ir à estante, em vez de ligar a geringonça cibernética e aguardar conexão.

Aviso logo que sou suspeito para falar, porque sou discípulo poético do autor e sou citado no livro, com glosas a uns motes de jaez fescenino que não me atrevo a repetir aqui, pois esta coluna é lida pela família paraibana. Glauco disseca não apenas as formas métricas clássicas do soneto, da ode, etc., mas também deita e rola na métrica da nossa poesia popular (sextilha, mourão, martelo, etc.) que ele domina com uma maestria de fazer inveja àqueles violonistas japoneses que tocam samba tão bem quanto Baden Powell.

Num artigo na revista eletrônica Cronópios, Glauco afirma, com a ortographia antiga que prefere: “As ultimas gerações litterarias se accommodaram na desculpa de que, tendo as modernas tendencias ‘abolido’ as formas fixas, todos os poetas estariam automaticamente desobrigados de dominar e até de conhecer regras de versificação. Isso me lembra um bando de alumnos relapsos que, certos da approvação pela ‘progressão continuada’, consultam seus botões: ‘Estudar p’ra que, si ja passei de anno? Apprender a compor versos? P’ra que, si ja me considero poeta e ninguem me desmente?".

A poesia marginal dos anos 1970 trouxe de volta à poesia em geral doses de irreverência, de coloquialismo, de informalidade, de palavrão, de gíria, de ludismo verbal sem compromisso. Neste processo, perdeu-se (mas não em Glauco Mattoso) um tipo de conhecimento técnico que este manual recupera. Não é por existir o rap que devemos jogar no lixo as partituras.

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

2331) A conexão Zevaco – Guimarães Rosa (27.8.2010)





Uma das minha leituras preferidas na infância foi a dos folhetins de capa-e-espada de Michel Zevaco (1860-1918), famoso pelas aventuras do Cavalheiro de Pardaillan. 

Um livro de Zevaco, Nostradamus, transcorria em parte no “bas-fond” parisiense do século 14, e havia um quarteto de personagens, meio marginais, cujos nomes tinham uma sonoridade rabelaisiana. Chamavam-se Corpodibale, StrapafarBouracan e Trinquemaille. 

Eram, por assim dizer, uma turma tipo Malagueta, Perus e Bacanaço, misturada com Lino Pedra Verde e Quincas Berro Dágua.

Ao saber que Rosa tinha um livro chamado Corpo de Baile, tive a idéia estapafúrdia de que Rosa tinha lido Zevaco, e o título de seu livro era uma homenagem ao truão francês! A Serpente da Paranóia Concatenadora acendeu seus olhos esverdeados dentro de mim e começou a rastejar. 

Qual não foi minha surpresa, anos depois, quando li do começo ao fim o Grande Sertão, e os outros truões do Pátio dos Milagres de Zevaco começaram a aparecer, de um em um!

Veja-se o episódio da batalha na Fazenda dos Tucanos, entre o bando de Zé Bebelo e o dos “hermógenes”. Na página 328 da 2a. edição, Zé Bebelo, cercado e sob tiroteio, envia o Joaquim Beijú e o Quipes com bilhetes, e Riobaldo fica em dúvida se aquilo é um pedido de socorro ou uma traição. E diz: 

“Só que eu ia sempre vigiar Zé Bebelo. Ele trair, vivo, eu não deixava. Zé Bebelo tinha sua espécie de natureza – que servia ou atraiçoava? Ah, depois eu ia ver. Ah, eu ia ver se, no engasgo da hora, ele ia querer se estrapafar”. 

Anotei.

À pág. 399 dessa edição, no episódio das Veredas Mortas, Riobaldo, tremendo de frio sob as “absolutas estrelas”, espera o Diabo, e monologa: 

“Porque a noite tinha de fazer para mim um corpo de mãe – que mais não fala, pronto de parir, ou, quando o que fala, a gente não entende? Despresenciei. Aquilo foi um buracão de tempo”. 

Anotei de novo.

E vem o episódio crucial em que Riobaldo encara Zé Bebelo e pergunta, diante do bando: “Quem é que é o chefe?”. Nesse confronto de machos-alfa, Zé Bebelo vacila, recua: o poder do Tatarana é maior. Zé Bebelo se despede do bando, dizendo que não sabe ser segundo nem terceiro. Pega suas coisas e vai embora. Riobaldo manda o bando se organizar e parte à frente dele, pela primeira vez investido na “potente chefia”. E registra, à pág. 414: 

“Dali a gente tinha logo de sair, segundo a regra exata. Estradeei. Nem olhei para trás. Os outros me viessem? Cantava o trinca-ferro.” 

Anotei também; com uma interrogação entre parênteses.

Estarei delirando? Rosa tinha, em sua biblioteca, uma edição francesa de “Les Pardaillans” de Zevaco (cf. Suzi Frankl Sperber, Caos e Cosmos). Costumava escrever aos jorros, sem freios, de modo quase mediúnico, e muito do seu estilo repousa no palavra-puxa-palavra. Não me admiraria que, sem perceber, sem intenção alguma, ele estivesse evocando em seu inconsciente verbal os marginais de Michel Zevaco e seus sonoríssimos nomes.



Est artigo está incluído no meu livro A Nuvem de Hoje, Campina Grande, Editora da UEPB/Selo Latus, 2011.)




2330)A origem dos sonhos (26.8.2010)



O filme de Christopher Nolan “ Origem tem sido elogiado e criticado pelas razões erradas. Elogiam-no pelos efeitos especiais, o que é o mesmo que elogiar uma mulher pela maquilagem. Elogiam pelas cenas de ação, que provavelmente nem foi Nolan que dirigiu – os estúdios têm diretores de segunda unidade: Diretor de Perseguição de Automóveis, Diretor de Perseguição A Pé Por um Mercado Oriental, etc. Profissionais que todo mês dirigem a mesma cena, com equipe diferente, para um filme diferente – e só quem percebe isso sou eu? Elogiam, finalmente, o modo como o filme transporta para a tela o mundo dos sonhos. E isso é algo que ele só consegue em pequenos trechos (embora, nesses momentos, o faça com brilhantismo).

O grande momento do filme é quando Leonardo DiCaprio e Ellen Page estão sentados na calçada de um café parisiense e de repente os prédios em volta começam a explodir; ela se assusta, e ele diz: “Calma. Estamos sonhando.” Quando Ellen assimila o fato de que aquilo é um sonho controlado, e começa a dobrar a cidade de Paris sobre si própria, estamos diante de um grande momento do cinema contemporâneo, digno da fantasia gráfica do Little Nemo de Winsor McKay ou de uma gravura de M. C. Escher. Estamos num mundo visual-narrativo que se comporta de acordo com as leis do mundo onírico. Não porque apareçam elefantes cor-de-rosa, mas porque ali a mente pode provocar mudanças instantâneas, absurdas, rompendo regras de tempo e de espaço. Isso é uma das primeiras coisas em que o mundo dos sonhos é diferente deste.

O filme de Nolan tem uma idéia audaciosa e uma narrativa controladíssima. Ele passa do plano real para três planos sucessivos de sonhos, e eu, que geralmente me perco em coisas assim, me mantive o tempo inteiro consciente do que estava se passando nos demais níveis. O problema é que esse excesso de controle faz com que o filme acabe sendo menos onírico, porque sonho é descontrole, é não sabermos onde estamos nem quem sou nem quando é. Neste aspecto, os cineastas que produziram filme de sintaxe onírica contam-se nos dedos: Luís Buñuel, Raul Ruiz, David Lynch, Peter Greenaway, Jeunet & Caro, alguns momentos dos irmãos Coen, de David Cronenberg, de Fellini, de Alain Resnais, e certamente de mais uma dúzia que desconheço.

Falei em Escher; assim como nas gravuras de Escher somos forçados a aceitar duas realidades visuais contraditórias, em A Origem somos forçados a aceitar duas realidades narrativas contraditórias, a narrativa do sonho, que é randômica e fraturada, e a narrativa do filme de Hollywood, que é articulada, cheia de conexões de causa e efeito, e converge toda para um desfecho plausível. Ora, Hollywood, que já foi chamada “a usina de sonhos”, produz tudo, menos sonhos. Produz fantasias, que são criações conscientes, inspiradas por um desejo. Um sonho é diferente. É um dilaceramento caótico de desejos e repulsas, e seus cacos são imagens que não têm a menor intenção de fazer sentido.

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

2329) Drummond: “Construção” (25.8.2010)


(Drummond, por Beatrix Sherman) 

Estou comentando nesta coluna os poemas de Carlos Drummond de Andrade em seu livro de estréia Alguma Poesia, que está comemorando 80 anos de lançamento. Embora a obra de CDA seja variadíssima e cheia de fases, é possível dizer, sem cometer absurdo, que todos os traços principais desta obra já estão presentes em seu primeiro livro. (Não se pode dizer o mesmo, por exemplo, dos livros de estréia de João Cabral ou de Jorge de Lima.) 

Dos poemas iniciais pegarei hoje dois que se aproximam pela temática. Não sei se a construção civil era um tema habitual na época, mesmo entre os Modernistas. Haverá alguma coisa assim em Mário, em Oswald? Talvez haja em Bandeira, que já era moderno e urbano antes de todos os demais. Em todo caso, há dois poeminhas aqui que são quase que um só. “A rua diferente” diz: “Na minha rua estão cortando árvores / botando trilhos / construindo casas. // Minha rua acordou mudada. / Os vizinhos não se conformam. /Eles não sabem que a vida / tem dessas exigências brutas. // Só minha filha goza o espetáculo / e se diverte com os andaimes, / a luz da solda autógena / e o cimento escorrendo nas fôrmas”. 

 A filha é Maria Julieta, nascida em 1928. A cidade não é Itabira, é Belo Horizonte, que na época do livro de Drummond tinha metade da população que Campina Grande tem hoje. Drummond registra a entrada dolorosa da cidade na puberdade urbana, num poema em que o “eu” só aparece indiretamente (“minha rua”, “minha filha”). O poeta não toma partido, fala da melancolia dos vizinhos e da alegria da garota. O bota-abaixo da cidade é como o bota-abaixo da poesia modernista. Os apegados à paisagem velha ficam assustados; os jovens se divertem. Drummond, neste poema, rigorosamente não toma partido, apenas constata. (E quem constata uma mudança sem tomar partido é porque é a favor.) 

O outro poema, “Construção”, prefigura a canção homônima de Chico Buarque, ao falar que “um grito pula no ar como um foguete”. Não diz se é a queda de um operário, embora ela seja sugerida pelo verbo em outro verso mais adiante: “o sol cai sobre as coisas em placa fervendo”. A palavra “andaimes” liga este poema ao anterior, pendura os dois no mesmo varal temático. 

“Construção” emprega imagens sonoras (valha o oxímoro) ao dizer que “o sorveteiro corta a rua”, porque isto me sugere mais o som (não sei se o grito, a buzina, sineta, ou que diabo um sorveteiro usava naquele tempo) do que a imagem do sorveteiro passando. E também imagens térmicas (é verão, indicado pela placa fervendo e pelo sorvete). 

A frase final (“E o vento brinca nos bigodes do construtor”) é uma sinédoque (a parte pelo todo) ou um plano de detalhe cinematográfico: o tranquilo sorriso de triunfo do capitalismo em expansão, indiferente à temperatura ou aos acidentes de trabalho. É talvez parente do “homem atrás dos óculos e do bigode” do “Poema de Sete Faces”. É um sujeito sólido, frio, de poucos amigos. É o Mundo Moderno.




terça-feira, 24 de agosto de 2010

2328) O “Ulisses” húngaro (24.8.2010)


(outro livro, com o autor na capa) 

Cada país tem sua obra literária equivalente, em certos aspectos, ao Ulisses de James Joyce. Em geral são romances enormes, das primeiras décadas do século, quando um certo tipo de Modernismo literário atingiu o seu auge. 

Esse Modernismo misturava grandeza épica, investigação psicológica heterodoxa (o freudianismo era heterodoxo, naquele tempo), experiências radicais de linguagem e narrativa, imersão na cultura da metrópole e registro de seu ritmo descontínuo, da superposição e entrelaçamento de realidades sociais e linguísticas. 

Em cada país emergiu à superfície pelo menos um “iceberg” literário com esse perfil. Para o autor Joshua Cohen, que fez um levantamento dos “Ulisses” de várias culturas, o Ulisses húngaro é o romance Prae (1934) de Miklós Szentkuthy (1908-1988), que ele descreve assim: 

“Szentkuthy, cujo próprio romance nunca foi traduzido para o inglês, tem um ponto de contato único com o romance de Joyce: ele o traduziu para o húngaro. Seu romance Prae – o título é uma preposição latina, que significa ‘antes’ – apresenta personagens que se tornam cifras à medida que mudam de idade e de sexo (reflexos do Orlando de Virginia Woolf). Um ousado romance intelectual, preocupado com fenomenologia e outras tentativas de pensamento objetivo típicas da virada do século, ele se conecta ao livro de Joyce não apenas através do enredo, mas do seu argumento e suas metáforas”. 

Não parece existir muita coisa na Internet sobre Pré (seria este o título em português). Um blog espanhol traz um material razoável sobre o autor, inclusive uma curiosa foto sua em companhia da noiva (http://szentkuthy.blogspot.com/). O autor do blog, Jorgewic, comenta assim o romance: 

“Entre 1928 e 1931, começa a tomar forma na mente de Miklós o diário/romance Prae, um originalíssimo exercício de paródia filosófica visando os existencialistas alemães, tão em voga naquela época (Heidegger, Jaspers, Husserl). Nem mais nem menos que isto. Sem dúvida deve ter sido algo desconcertante naquela época: citações de livros inexistentes, matemáticas repletas de abstrações impossíveis, refutações fantásticas e comentários de uma categoria doutrinal surpreendente (e totalmente inventadas, na maioria dos casos), um grande aparato memorialístico e biográfico a serviço da estética mais impressionista (e muito joyceana, valha a expressão), um tumulto generalizado de idéias, psicologia, aforismos e expressões de corte ‘proustiano’ que em nada ficavam a dever ao autor da Recherche. Tudo isto era Szentkuthy, com apenas 20/25 anos, fazendo seu nome, um sujeito que se atrevia a edificar uma tamanha catedral literário-metafísica sem se encomendar nem a Deus nem ao Diabo, misturando Picasso, Planck, a Bauhaus, Huxley, Giraudoux, Einstein e outros. Seu estilo está por depurar (ele sabe que é uma questão de tempo), mas a brutalidade lógica de sua forma de pensar e sentir já se impõem, e não o intimidam”.




segunda-feira, 23 de agosto de 2010

2327) Um email nigeriano (22.8.2010)



“Caro senhor: estou incorporando contato para propor oportunidade excelente que você certamente não recuse. Ela é transação comercial sem riscos de sua parte, e a possibilidade de um lucro financeiro substancial. Eu sou o advogado e o executor do testamento para o Sr. Youssef Kingston de Lagos (Nigéria), e eu fui intitulado a essa função por esse cavalheiro antes de seu falecimento no Hospital Central de Lagos. Sr. Kingston, um músico do bem-conhecido e poeta de nosso país, morrido da falha múltipla dos órgãos, deixando nenhuns viúva ou filhos, e nenhuns parentes conhecidos. Eu fui nomeado por ele para ser seu executor, em um original assinado três dias antes de sua morte prematura na idade 32. Nesse original, o Sr. Kingston autorizou-me dispor, em minha vontade, de todos seus dinheiros e propriedades, dado que não teve nenhum parente e era grato para a ajuda que eu o dei ao longo dos últimos anos de sua carreira artística.

“Pelas leis de meu país, eu não posso administrar bens e finanças do Sr. Kingston em Nigéria, mas minha posição em Banco auxilia que eu transfira recursos do Sr. Kingston a uma conta bancária em outra país. Eu escolhi Brasil devido a liberalidade conhecido com que os bancos brasileiros operam esta sorte de transferência de fundos, e também porque eu pretendo, no próximo futuro, se aposentar de meu próprio trabalho aqui em Nigéria e ir viver em Rio de Janeiro. Seu nome foi-me dado por um conhecido mútuo que preferisse permanecer anónimo.

“Conseqüentemente, eu preciso transferir responsabilidades financeiras deixadas por Sr. Kingston, além de endereço onde possa remeter seus recursos pessoais. Basicamente, estes consistem: 1) onze mil e duzentos cópias dos CDs gravados pelo Sr. Kingston com seu grupo “The Screaming Criminals”, CDs recusados por lojas sob as alegações da natureza estética e moral; 2) seis caixas de livros, panfletos, folhetos e magazines do coletivo artístico “Rape and Disorder”, grupo bem conhecido da imprensa e autoridades em nosso país; 3) onze latas seladas com fita crepe, com um peso total de dezoito quilogramas, nenhum conteúdo indicado. Em adição àquele, preciso o número de sua conta bancária pessoal, a fim fazer transferência de todos os títulos públicos, procurações e faturas deixados atrás por meu cliente, cujo balanço financeiro soma DOIS MILHÕES E DOIS CEM MIL DÓLARES AMERICANOS de pensões devidas a diversas ex-esposas, adiantamentos de companhias discográficas e editoras, além do ressarcimento de débitos acumulados a juros compostos junto a ex-locatários e ex-sócios. Eu sou certo que no ambiente financeiro brasileiro não será muito difícil para você extrair um bom lucro da herança do meu cliente. Eu agradeço-lhe para sua atenção, e olho para a frente para escutar de você. Sinceramente, Sr. Franklin Garrison, attorney-at-law.”

sábado, 21 de agosto de 2010

2326) “As esposas de Stepford” (21.8.2010)




Em O Bebê de Rosemary (1968) de Roman Polanski, um jovem casal que começa a ascender socialmente vai morar num grande apartamento no Central Park. Aos poucos, a mulher vê o marido se portando de maneira estranha, e descobre, para seu horror, que ele se juntou a um grupo de vizinhos satanistas que pretendem fazer com que ela engravide do Diabo e dê à luz o Anticristo. 

Em As esposas de Stepford (1975) de Bryan Forbes, um jovem casal que começa a ascender socialmente vai morar numa grande casa no subúrbio. Aos poucos, a mulher vê o marido se portando de maneira estranha e descobre, para seu horror, que ele se juntou a um grupo de vizinhos cientistas que pretende fazer com que ela seja substituída por um andróide programado para obedecer passivamente ao marido.

Estes dois filmes tão diferentes e tão parecidos são ambos baseados em romances de Ira Levin (publicados respectivamente em 1967 e 1972). 

Liguei a TV um dia destes e estava nos minutos iniciais de The Stepford Wives, que eu vira há uns 20 anos. Sentei no sofá e vi até o fim, mas como não vi os créditos iniciais não me lembrei (talvez nem soubesse) dessa participação de Ira Levin. Mas a certa altura pensei: “Danou-se, é igualzinho ao Bebê de Rosemary”. 

Isto mostra que é possível pegar a mesma história emocional (a mesma sinfonia macabra de alegria, depois ensombrecimento, depois angústia, terror e dilaceração final) e contá-la em duas histórias factuais muito diferentes, e até de gêneros diferentes. A mecânica é a mesma; o esqueleto dramatúrgico é o mesmo (claro, detalhes variam aqui e acolá); mudam apenas o cenário, os personagens e a natureza interna de alguns processos.

As esposas de Stepford (que foi grotescamente refilmado, com Nicole Kidman e Matthew Broderick) é um filme de FC meio desdenhado pela crítica; revendo-o agora, constatei o quanto é atual. Ele é o pesadelo de uma mulher independente perdida num inferno consumista, alienado. 

As mulheres de Stepford parecem esposas de candidatos do Partido Republicano: passam o dia maquiladas, com cabelo armado, trajando vestidos longos e estampadíssimos, com chapéus de sol; devotam-se às tarefas domésticas, e obedecem cegamente aos maridos. Não, “cegamente” não: obedecem de olhos abertos e com um inextinguível sorriso nos lábios. Numa cena em que a protagonista entra sem avisar na casa da vizinha, ouve o casal no quarto, e a amiga, que é casada com um panaca, gemendo de êxtase e dizendo que ele é “o maior, o campeão”.

Sim, os maridos (são todos cientistas, o que em círculos republicanos não está muito longe de serem todos satanistas) copiaram todos os detalhes da aparência de suas esposas, transferiram tudo para andróides bem programados, e, digamos, descartaram a versão biológica. 

Um pesadelo cruel e philipkdickiano que mistura Hustler e Popular Mechanics, com uma colher de Casa & Jardim e dois dedos de Vampiros de Almas.





sexta-feira, 20 de agosto de 2010

2325) Autores que não li: Proust (20.8.2010)



A frase famosa é de Jorge Luís Borges, já não me lembra onde: “Que outros se orgulhem dos livros que escreveram; eu me orgulho dos livros que li”. Bela humildade, a de Borges, mas eu sou mais humilde do que ele, e me orgulho dos livros que não li. Este orgulho eu os divido com os fantasmas dos homens que escreveram esses livros, como se dissesse a cada um deles: “És grande, ó Tetrarca! Eu, que tantos templos já invadi, não me julguei digno sequer de acessar o teu. Tua inteligência é maior que a minha. Agora vai embora daqui, antes que eu perca a paciência e te aplique uns cascudos!” Já dirigi esta reprimenda a Marcel Proust, o dos bigodes encerados, ou, como diz um irreverente amigo meu, “aquele escritor que molhava o biscoito”.

De Proust só li as primeiras 50 páginas de um ou outro livro, e os trechos transcritos em ensaios que devorei de olho atento e caneta em punho, sublinhando para sempre. Deixei-me intimidar pelo tamanho do Em Busca do Tempo Perdido, pelo elenco de centenas de protagonistas e milhares de figurantes. Curiosamente, nunca me intimidei pelo famoso “parágrafo proustiano”, que dura páginas e mais páginas, e cria na sintaxe o que as gravuras de M. C. Escher criam na perspectiva. Isso antes me deleita que me assusta. Meu medo sempre foi ter que interromper a leitura por um mês e depois não conseguir mais distinguir o Marquês Fulano do Barão Sicrano, porque confesso que quando um sujeito ostenta um título eu fico com dificuldade de enxergar o sujeito.

Uma vez vi num sebo carioca um balcão tomado por uma “chegada” recente: cerca de 300 livros de e sobre Proust. Fiquei vendo aqueles volumes em meia dúzia de idiomas, de todos os tamanhos, uns antiquíssimos, outros recentes, e todos mostrando na lombada o recorrente nome. Me bateu então o peso da repercussão de uma obra que é como uma avenida por onde todos têm que passar e eu (ai de mim) nunca passei.

Há cerca de dois anos, num evento literário, encontrei Ariano Suassuna e ficamos conversando num grupo de pessoas. Um comentário de alguém levou Ariano a citar uma frase de Proust, e depois fazer um longo elogio do autor francês. Aí ele virou-se para mim e disse: “Você gosta de Proust?” Era tão fácil dizer que gostava! Mas eu confessei que nunca tinha lido. Ele bateu com a mão na perna e exclamou: “Mas precisa ler! Tem que ler! E nós temos inclusive traduções excelentes, como as de Mário Quintana, por exemplo”. Passou uns cinco minutos elogiando Proust, e eu já estava com uma desculpa na ponta da língua: que são 8 ou 9 volumes, é muita coisa, não tenho tempo... Mas aí Ariano encerrou: “Ave Maria, é tão bom que só de falar está me dando vontade. Ano que vem vou ler tudo de novo”. Quando alguém com mais de 80 anos diz isso, tem que ter um significado. Pra mim (que nunca li Proust) é o seguinte: que enquanto um indivíduo tiver uma alma viva, um cérebro funcionando e um coração batendo, nenhum tempo é tempo perdido.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

2324) Amnésia (19.8.2010)



O romance policial “noir” retorna obsessivamente a um pequeno número de temas, sendo a obsessão um deles. Outro é a amnésia. Alguém deveria fazer uma tabulação estatística de todas essas histórias que começam com um sujeito acordando num quarto, sem lembrar quem é e onde passou os últimos dias, e, em geral, ao lado de um cadáver desconhecido. 

Quando essa pesquisa for feita, sugiro esses dois romances, que reli agora depois de muitos anos: A Cortina Negra (“The black curtain”) de William Irish (pseudônimo de Cornell Woolrich) e Morte Inglória (“To Dusty Death") de Hugh McCutcheon. Li ambos quando tinha uns 14 anos, comprados em sebos do Recife; reencontrei-os agora num sebo do Rio, sempre juntos. 

Ambos começam com o protagonista voltando a si numa calçada, socorrido por algumas pessoas. Levou uma pancada na cabeça. Fica de pé, diz que está bem. Põe-se a andar e aí percebe que está vestindo uma roupa que desconhece, encontra-se numa zona desconhecida da cidade sem saber o que foi fazer ali, e não sabe o que lhe aconteceu nos últimos tempos. 

Parece com aqueles testes de oficina literária, em que se dá um começo para cada escritor desenvolvê-lo ao seu modo. Estes dois romances são histórias de amnésia, mas ao invés de começarem com o protagonista amnésico, começam no momento em que, devido à pancada, ele volta a lembrar quem é – mas sem saber o que lhe aconteceu quando perdeu a memória. 

Em Cortina Negra, Frank Townsend volta a si para perceber que está desaparecido há um ano e meio, a esposa julga-se viúva e mudou de apartamento, e ele, provavelmente, cometeu um crime do qual não se recorda. 

Em Morte Inglória, Richard Logan volta a si para perceber que está desaparecido há três semanas e provavelmente cometeu um crime do qual não se recorda. 

Os dois protagonistas tentam reconstituir o que lhes aconteceu, sendo perseguidos pela polícia ou por bandidos, sendo abordados por pessoas que parecem conhecê-los por outro nome. Uma classificação prévia de histórias assim as dividiria em histórias com personagens amnésicos (como o conhecido filme Amnésia de Christopher Nolan, com Guy Pearce), e histórias com personagens pós-amnésicos, como estes dois exemplos. 

O personagem amnésico está em pleno torvelinho da perda da identidade, não reconhece ninguém, não sabe quem é, não sabe o que deve fazer; está totalmente no escuro. O personagem pós-amnésico conseguiu voltar para dentro de si próprio mas permanece com um buraco no passado, um espaço proibido, oculto por uma “cortina negra”. 

Eu diria que essas histórias, que sempre existiram, encontraram uma ressonância especial na mente dos leitores norte-americanos dos anos 1930-40. Uma Grande Depressão econômica fez com que milhões de vidas fossem bruscamente partidas ao meio – um bancário vira um mendigo, um comerciante vira um marginal. Perdeu-se a identidade anterior, e a vida atual é um pesadelo de onde é impossível fugir, e onde são praticados atos que a identidade anterior não praticaria.





quarta-feira, 18 de agosto de 2010

2323) “A Chinesa” de Godard (18.8.2010)



Este filme é descrito pelos detratores de Jean-Luc Godard como o seu filme mais chato. (Todo detrator de Godard o conhece pouco. Se acham La Chinoise chato, coitados, nunca viram One plus One ou Vent d’Est.) Afinal, que graça pode ter uma hora e meia de filme mostrando meia dúzia de rapazes e moças trancados dentro de um apartamento, falando sem parar? Anos depois, o Big Brother Brasil respondeu esta pergunta: os rapazes e moças teriam que ser “saradões” e “gostosas”, e deveriam conversar apenas o equivalente verbal a Cheetos, M&M ou Potato Chips.

O filme de Godard é um BBB fictício sobre os jovens maoístas que, um ano depois (o filme é de 1967) encheriam Paris de carros com os pneus para cima, barricadas, coquetéis Molotov e slogans incendiários. Quando vi A Chinesa pela primeira vez, em 1970, tive reações contraditórias. Um terço das palavras-de-ordem dos jovens maoístas eu não compreendia, absolutamente. Um terço eu renegava de corpo e alma. E um terço eu concordava com fervor. Não sei se cometerei a obviedade retórica de afirmar que hoje, quarenta anos depois, tive as mesmas reações, mudando apenas as palavras-de-ordem que as provocavam. (Não; melhor não dizer.)

Minha ingenuidade de cineclubista adolescente, na época, consistia em imaginar que Godard era maoísta e que o filme era uma apologia do que aqueles rapazes e moças estavam fazendo. Hoje, minha surpresa é que Godard não tenha sido explodido, por um homem-bomba maoísta, no dia seguinte à pré-estréia. Seu retrato dos jovens adoradores do Livro Vermelho é tão impiedoso quanto o que ele faria hoje sobre os participantes do Big Brother Brasil (que coisa, maoísmo e BBB continuam voltando juntos ao meu juízo!). Há detalhes tão impagáveis e irônicos que os considero injustos. Não é possível que jovens sensatos defendessem tais idéias. Mas é possível, sim. Tudo, quase tudo, é possível.

O humor de Godard. Um dos jovens pega um guidom de bicicleta, coloca-o na cabeça como um par de chifres, e encena uma tourada, brincando. Depois, joga o guidom no lixo; um vizinho o apanha e diz: “Que belo guidom de bicicleta!”. Ele comenta, maravilhado: “Os operários são criativos. Ele transformou um touro num guidom de bicicleta!”. Precisa mais? Véronique vai a um prédio para assassinar um diplomata soviético (os maoístas odeiam os soviéticos mais do que odeiam os capitalistas). Quando volta, percebe que confundiu o ap. 32 com o 23 e matou a pessoa errada; volta e mata a pessoa certa. Precisa mais?

Ainda assim, Godard consegue ver nesses rapazes e moças maoístas o que eles de fato são: rapazes e moças. Eram maoístas como poderiam ser qualquer outra coisa que lhes desse a sensação de que estavam vivos, de que o que faziam tinha importância para o mundo, de que estavam vivendo uma grande aventura, de que a vida era bela, e de que “se o marxismo-leninismo existe, tudo é permitido”. Hoje, tudo é permitido porque ele não existe mais.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

2322) Sugestões para o livro eletrônico (17.8.2010)



Há duas atitudes extremas que não me interessam. Uma é achar que o livro eletrônico vai acabar com o livro de papel (não vai) ou com a prática da literatura (menos ainda). A outra é achar que ele é um milagre, e que vai habituar as pessoas a ler oferecendo-lhes coisas que se afastam cada vez mais do texto, livros que contêm mais desenho animado do que texto. Como objetos são uma gracinha. Mas eu, que sou um produtor de textos, quero suportes físicos que ajudem e valorizem o texto, não que o empurrem para segundo plano. Não por interesse pessoal ou vontade de ficar rico – já estou na metade do 2o. tempo e não acredito em prorrogação; mas por amor à arte. À arte do texto.

Uma sugestão: já que o livro eletrônico tem espaço à beça, poderíamos promover edições de obras em que o leitor adquirisse não somente a tradução brasileira de uma obra clássica, mas também o texto original, e quem sabe em outras línguas (espanhol, inglês, francês), tudo incluído no pacote. No caso de clássicos em domínio público, ficaria baratíssimo.

Minha edição de “O Jogo da Amarelinha” de Julio Cortázar é da Cátedra (Madrid), na coleção “Letras Hispânicas”. O livro tem uma introdução com 70 páginas, uma bibliografia de 12 páginas de e sobre o autor, um mapa de Paris, fotos das ruas citadas. É um livrinho de bolso, não muito caro (me custou cerca de 50 reais), com menos de 800 páginas. Se dá pra fazer isso no papel, por que não nos pixels? Ao invés de uma bibliografia meramente citando títulos, que tal o e-book trazer, como faixas bônus, o texto de algumas das dezenas de críticas já feitas sobre o livro? O trabalho seria apenas o de licenciar os textos originais e incluí-los nos direitos autorais, separando uns 2 ou 3% para isto.

Um e-book pode me dar a possibilidade de comparar, sem me erguer da cadeira, um trecho da tradução com o original, e com as soluções encontradas por outros tradutores. Como “O Jogo da Amarelinha” é um romance passado em Paris, eu poderia ter não somente o mapa específico do livro, salientando os trajetos dos personagens, mas acesso ao mapa Google com imagens de satélite da rua em seu aspecto atual (o livro é ambientado nos anos 1950).

Notas de pé de página, que incomodam alguns leitores, podem vir sob a forma de balões que surgem na tela quando clicamos num trecho assinalado. No caso de “Rayuela”, que tem uma proposta vanguardista de leitura (por capítulos salteados), seria possível reordenar os capítulos de acordo com alguma das ordens de leituras propostas e lê-los assim de uma só enfiada, o que no livro de papel exigiria ficar indo e voltando. Um livro sem capítulos como “Grande Sertão: Veredas” poderia ser desmembrado em unidades ou episódios, num gráfico em forma de árvore, e seriam acessados diretamente para consulta rápida, sem que fosse quebrada a sua forma original. Há muitas maneiras de usar a eletrônica para valorizar o uso do texto e a fruição do texto.

domingo, 15 de agosto de 2010

2321) A estética do Algo Me Diz (15.8.2010)




(ilustração: Istvan Orosz)

O folhetim não é apenas o território predileto da coincidência: é também o terreno mais fértil para a premonição. 

Premonição é aquela certeza intuitiva e inexplicável que às vezes nos assalta, sem motivo aparente, mas com uma pressão que não pode ser ignorada. Às vezes é uma ansiedade crescente que vai se acumulando ao longo de dias e semanas; outras, é como um raio que cai de repente ou uma mão que nos agarra pela garganta.

“Algo me diz que esse porteiro não merece confiança”, murmura um personagem para a esposa ao subir no elevador. 

Outro, às voltas com os milhares de páginas do inventário de um espólio, tem tempo de comentar: “Algo me diz que essa procuração assinada em 1948 ainda vai nos causar problemas”. 

Uma mãe, vendo o filho apaixonadíssimo por uma mocinha linda e atenciosa, murmura por cima dos óculos: “Alguma coisa me diz que essa garota não é flor que se cheire”. 

 Por que dizem isso? Dizem porque estão ouvindo a voz de Algo, mas não sabem exatamente o quê, e não conseguem rastrear o por quê. O “algo” que está tentando lhes passar uma mensagem é o Inconsciente. O cérebro humano tem a capacidade de processar informações em paralelo, num setor secundário, enquanto o setor primário está se relacionando com outros indivíduos, conversando, falando, ouvindo, cuidando dos fatos exteriores da vida. 

Mas lá atrás alguns processos estão comparando informações, reexaminando detalhes, detectando pequenas discrepâncias. E mandando recado para a parte dianteira da mente: “Ei, ei, tem alguma coisa errada”.

O folhetinista hábil planta essas premonições ao longo da narrativa para preparar alguma situação, seja confirmando as desconfianças, seja desmentindo-as – porque, sim, o nosso Inconsciente também se engana, também comete erros de juízo e de interpretação. 

Mas a inquietação de um personagem, desde que formulada sem muito peso na mão, pode servir para criar uma tênue linha de suspense, a possibilidade sempre latente de um fato inesperado, de uma reviravolta que quando sucede nos pega em parte de surpresa e em parte nos faz confirmar, com uma pequena sensação de triunfo: “Arrá! Eu bem que desconfiei”.

No momento culminante do filme ou no derradeiro capítulo da novela, quando tudo parece perdido, um personagem secundário aparece com a solução providencial e redentora. Passado o susto, as quase vítimas exclamam: “Mas Dona Fulana! O que foi que lhe deu, para a sra. se lembrar de tomar essa providência?” E ela responde: “Alguma coisa me dizia que isso ia acabar acontecendo”. 

Um personagem de romance folhetim ou de telenovela está sempre com o ouvido atento para esse Algo, para essa Alguma Coisa que volta e meia bate à janela de sua alma para lhe passar um recado. Feliz do personagem que dá ouvidos a esses recados, porque quem os plantou ali foi o Arquiteto dos Personagens, o Artífice Onipotente dos seus destinos, cujo identidade, por modéstia, é melhor calarmos.






sábado, 14 de agosto de 2010

2320) Pagu (14.8.2010)




Este ano completam-se cem anos de nascimento de Patrícia Galvão, conhecida como Pagu, uma das figuras mais curiosas (e talvez a mulher mais bonita) do Modernismo brasileiro.

Pagu é ainda hoje uma espécie de nota ao pé da página do Modernismo, citada na maioria dos artigos como ex-esposa de Oswald de Andrade, como musa do movimento, e como romancista que escreveu um livro sobre operários (Parque Industrial, 1933) numa época em que estes eram meio que invisíveis para a literatura brasileira, com exceção dos comunistas. O que ela foi, aliás.

Foi também uma mulher irreverente e em certa medida escandalosa, cujos trajes e atitudes deixavam aflitas as famílias da época; uma espécie de Anayde Beiriz da Paulicéia Desvairada.

Para os cinéfilos brasileiros, Pagu é a mãe do recentemente falecido Rudá de Andrade, crítico de cinema, professor da USP e ex-conservador da Cinemateca Brasileira.

Para outros críticos, de pendores mais literários, é a mãe do escritor Geraldo Galvão Ferraz, aliás um entusiasta da ficção científica.

A biografia de Pagu é cheia de lances surpreendentes. Dirigiu peças de Arrabal e Ionesco, foi presa em Paris como comunista, trouxe da China sementes de soja e as introduziu no Brasil... Foi tema de canções, filmes e livros, e de um livro de Augusto de Campos; mas ainda falta uma dessas biografias extensas e detalhadas que dê conta da personagem fascinante que certamente foi.

Os eventos em homenagem ao seu centenário podem ser consultados aqui: http://www.pagu.com.br/blog/home/.

Falarei dela sob outro ângulo. A maioria dos jornalistas brasileiros em atividade digitou os caracteres “pulp fiction” pela primeira vez graças a Quentin Tarantino, que eles julgam ser o inventor dessa expressão. Não foi, e o Brasil teve “pulp fiction” durante muitos anos, embora fosse uma ficção traduzida, com poucos autores locais.

Um desses autores foi Pagu, que escreveu contos policiais publicados nas revistas da época, sob o pseudônimo de King Shelter (parece pseudônimo de roqueiro colombiano). Os contos policiais de Pagu foram reunidos pelo seu filho Geraldo Galvão Ferraz num volume intitulado Safra Macabra. Foram publicados entre junho e dezembro de 1944 na revista Detetive, cujo editor era Nelson Rodrigues.

Era uma época em que revistas populares de contos policiais (pulp magazines) eram publicadas no Brasil, tentando emular o sucesso que faziam nos EUA. Eram revistas como Mistérios, Meia Noite, A Novella, etc.

As que tiveram vida longa, como Detetive ou X-9 não revelaram autores nacionais, limitando-se a traduzir o material enviado pela matriz novaiorquina.

Ou talvez não. Assim como o pseudônimo King Shelter escondia uma intelectual de esquerda que dirigia peças do Teatro do Absurdo (mas precisava descolar uma grana para o aluguel do apartamento e o leite das crianças), talvez muitos outros nomes escondam personagens de cuja identidade nem suspeitamos.





sexta-feira, 13 de agosto de 2010

2319) “A Origem” (13.8.2010)



Este filme de Christopher Nolan está sendo chamado de “Matrix do Século 21” (não esqueçamos que o Matrix que abriu a trilogia é de 1999), e com razão. Bastante parecido, e diferentíssimo. Nolan é famoso hoje pelos seus dois filmes de Batman (Batman begins, 2005, 150 milhões de dólares; Batman, o Cavaleiro das Trevas, 2008, 185 milhões) mas pra mim ele é acima de tudo o cara que fez dois filmes personalíssimos: Amnésia (2000, 5 milhões), aquela história de crime contada de trás para diante, e O Grande Truque (2006, 40 milhões), a peleja entre dois mágicos na Inglaterra vitoriana, adaptando um romance de Christopher Priest. A Origem (“Inception”) é um filme de 160 milhões de dólares e de certo modo tenta fazer a ponte entre os filmes de ação e os filmes-cabeça do diretor. Estou citando esses orçamentos porque são números essenciais para definir um gênero. Até que ponto é possível (nos EUA) fazer um filme de ação bem sucedido com 5 milhões de dólares? Até que ponto é possível fazer um filme-cabeça bem sucedido com 160 milhões?

É nessa corda-bamba que se equilibra Nolan, um diretor que tem ambições mentais, quer contar histórias complexas, quer tocar em questões metafísicas através de enredos de ficção científica, e de fato se beneficiou em parte do sucesso de filmes como Matrix para poder alavancar (este verbo tão hollywoodiano) projetos como Origem. Como o filme entrou recentemente em cartaz, não discutirei em detalhe o roteiro, que tem as previsíveis surpresas e reviravoltas do gênero. Mas comentarei um aspecto dessa fusão de dois gêneros (ação e cabeça).

Não se trata de uma fusão, mas de uma colagem. Nolan bolou um enredo sobre pessoas capazes de penetrar nos sonhos das outras e viver lá dentro como se fosse uma realidade virtual a mais. Isto daria um ótimo thriller psicológico – vejam que não estou reivindicando nada do tipo Alain Resnais ou David Lynch. Pra mim, thriller psicológico tá de bom tamanho, é uma fórmula que pode resultar num ótimo filme. Como chegar a essa fórmula? Muito simples: tirando as cenas de ação, e o filme não perderia nada. Não perderia nada sem: 1) a perseguição a DiCaprio através da feira livre de um país oriental; 2) as duas perseguições à van onde os “ladrões de sonhos” fogem pela cidade, van que é atingida por cerca de 500 balas de alto calibre e só um cara é ferido; 3) o cerco e assalto à fortaleza na neve, que um crítico ironicamente chamou de “o momento Estação Polar Zebra do filme”. Para mostrar que não tenho nada contra cenas de ação, eu deixaria toda a sequência inicial, e depois toda a sequência em gravidade zero no hotel de luxo (tem que ver o filme para entender do que se trata). Os intermináveis, explosivos e ruidosos trechos de ação estão aí para fazer com que 2/3 da platéia assistam o restante do filme. Origem é como aqueles filmes-cabeça de Robbe-Grillet, cheios de cenas de sexo, sem as quais não seriam financiados, exibidos ou vistos.

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

2318) Drummond: “Toada do amor” (12.8.2010)



Os poemas de amor de Alguma Poesia (cujos 80 anos de publicação o Brasil está comemorando, ou melhor, os 8,12% do Brasil que leem poesia) parecem hoje meio bobinhos, meio dejavi, certamente porque antes de lê-los no livro de 1930 tomamos conhecimento das diluições que sofreram nos anos 1980. E olha que o amor nem foi o território em que Drummond, ao estrear em livro, produziu maiores abalos sísmicos, pelo menos comparado à constatação existencialista “avant la lettre” da vacuidade de sentido prévio à presença humana sobre a Terra (“No meio do caminho”). “Toada do amor” (que já no título questiona obliquamente, plebeiamente, a noção de “canções de amor”) é um poeminha singularmente banal e incomodamente irredutível a explicações. Reduzamo-lo.

Começa assim: “E o amor sempre nessa toada: / briga perdoa perdoa briga”. Essa repetição invertida é uma das figuras retóricas preferidas de Drummond. Exprime aquela notória rotina de todos os namorados presos aos nós das relações em que se concede a “A” o direito do questionamento e a “B” o dever da explicação, e vice-versa. Nunca se sai do lugar, porque o assunto em si nunca importa. Importa o exercício do Poder da Briga para poder exercer o Poder do Perdão.

“Não se deve xingar a vida”, aconselha o poeta; “a gente vive, depois esquece. / Só o amor volta para brigar, / para perdoar, / amor cachorro bandido trem”. Eis uma estrofe que começa bem e termina num rébus. Só me resta tentar interpretá-la literalmente. Cachorro: a gente o enxota a pontapés e ele volta fiel, de língua de fora. Bandido: a gente não pode confiar em nenhum trato, nenhuma jura. Trem: tudo bem, a gente perde um, daqui a pouco vem outro.

“Mas se não fosse ele, também / que graça que a vida tinha?” Ouso afirmar que nenhum Parnasiano ou Simbolista fez essa pergunta, mesmo deixando de lado a linguagem de flanelinha-de-estacionamento-de-show. Para os ânteros, o Amor era uma maiúscula inquestionável. Quase um imperativo categórico. Os Modernistas são mais jovens, mais leves com a bola nos pés, mais dispostos a driblar (e consequentemente a serem driblados sem perder a esportiva). Que coisa boa, esse tal de amor! O problema é que acaba logo, mas o camarada vai fazer o que? Suicidar-se com absinto, com láudano, com garrucha de dois canos?

Não, amigos. O Modernismo fez um acordo com o Amor. É a coisa mais-maior da humanidade, tudo bem, mas só é infinito enquanto dura. Ninguém precisa perder a gravata nem penhorar o sobrenome da família. O amor é um fenômeno, digamos, meteorológico, produzido pela Natureza, mas que ao fim e ao cabo deixa-a intacta no essencial. É preciso amar, e por isto mesmo não se pode atribuir a cada Amor um sentença de vida e morte. “Mariquita, dá cá o pito / no teu pito está o infinito”. O que é o pito? Não sei, e do ponto de vista retórico é bom que não o saibamos, porque cada um continuará a procurá-lo, Santo Graal inesgotável das terras do Sem-Fim.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

2317) O aleatório controlado (11.8.2010)



Ter que escrever todos os dias é um excelente exercício para os músculos da inspiração, os quais, tais como os músculos da respiração (diafragma, etc.) tanto podem funcionar de modo automático quanto de modo deliberado. Assunto nunca falta. Quando parece estar faltando, basta-me olhar para a parede da esquerda e estender a mão para a estante de livros à minha direita, pegar um livro ao acaso, abrir ao acaso, e naquela página encontrar o “assunto para a coluna de hoje”. Estou usando a palavra Acaso de maneira distorcida, porque não se trata de um Acaso total, e sim do que eu chamo “o aleatório controlado”.

Por que motivo eu não encontraria, nessa página apanhada às cegas, um assunto que me motivasse a escrever? O livro foi apanhado às cegas mas não foi comprado às cegas, foi fruto de uma escolha no ato de adquirir e de outra escolha no ato de mantê-lo na estante (porque são muitos os chamados, e poucos os escolhidos). Se está aqui ao alcance de mão é porque fala de algo que me interessa, e sendo assim seria eu muito burro se não conseguisse encontrar, num livro que me interessa, algo que valha a pena ser discutido publicamente. Algo como “Técnicas Artesanais Para Filtrar Processos Randômicos de Direcionamento de Discussões Intelectuais”.

Houve um tempo em que eu acordava, ligava o computador, e pensava: “Vou escrever a coluna de hoje em torno de algum assunto que venha na minha caixa de emails”. Bingo! Nesses dias, por uma mágica subjetiva, me aparecia não apenas um, mas três ou quatro assuntos bons de desenvolver. Alguns eram aleatórios: spams, circulares, propaganda, coisas que foram mandadas para mim sem estarem sendo mandadas para mim especificamente. Outros eram coisas encomendadas por mim, mas sem poder prever nem o conteúdo nem o momento em que chegariam às minhas mãos: newsletters de saites e de publicações sobre assuntos que me interessam (ciência, literatura, poesia, cinema, FC e por aí vai). Um belo dia abro a caixa e lá está um email da revista Edge discutindo os recentes aspectos científicos do conceito de Moral e Ética. Só está lá porque eu cliquei num botão, meses atrás, dizendo que estava interessado em qualquer coisa que essa revista viesse a discutir.

O primeiro exemplo é o aleatório puro; o segundo é o aleatório controlado. Podemos controlar o que nos chega por Acaso se escolhermos uma fonte de estímulos aleatórios. É como ligar o rádio para ouvir músicas. Não podemos escolher as músicas uma por uma, elas nos vêm de acordo com a vontade do programador. Mas eu sei que se ligar na rádio A tenho mais probabilidade de ouvir rock, e se ligar na rádio B provavelmente vou ouvir MPB. Fechamos um pouco o leque de opções, mas ainda deixando-o suficientemente aberto para saber que o resultado, impossível de prever de forma específica, ainda assim estará dentro de uma faixa de controle e escolha da nossa parte.

domingo, 8 de agosto de 2010

2315) Darcy e Feynman (8.8.2010)





Reparei um dia destes que nesta coluna vivo a falar elogiosamente de Richard Feynman, dizendo que é um dos sujeitos mais inteligentes que já vi. Não retiro uma vírgula, mas acho engraçado que eu nunca tenha me dado o trabalho de dizer o mesmo sobre um cara que mora metaforicamente aqui na esquina. 

Darcy Ribeiro, sob muitos aspectos, é o Feynman brasileiro. Fãs de um e fãs do outro hão de erguer agora, respectivamente, a sobrancelha esquerda e a direita, diante desta leve heresia. Não pode haver uma dupla de cidadãos mais dessemelhantes. 

Darcy era mineiro, foi simpatizante do comunismo, estudou etnologia, viveu dez anos entre os índios, tornou-se educador, fundou a Universidade de Brasília, viveu no exílio, foi vice-governador do Estado do Rio. 

Feynman era um norte-americano, filhos de judeus de ascendência polaca; trabalhou em pesquisas de energia atômica, ganhou um Prêmio Nobel de Física. O que têm em comum?

Basta ver as imagens dos dois falando (vocês pensam que o YouTube só serve pra ouvir música?) que qualquer pessoa percebe. Feynman e Darcy eram dois faladores compulsivos, incessantes. Alguém disse uma vez que para conseguir uma entrevista completa com Darcy bastava dizer: “Boa tarde, professor Darcy”, e ele começava: “Boa tarde, aliás uma belíssima tarde, típica da civilização tropical que o Brasil está construindo para o terceiro milênio, porque o choque das raças ocorrido neste território...”, e ia embora numa banguela de uma hora e meia. 

Darcy falava rápido como uma metralhadora; Feynman mais lentamente, mas talvez seja porque as imagens dele a que temos acesso já são dos seus últimos dez anos, durante sua queda-de-braço final contra o câncer. Mas, mais do que falar, ambos eram sujeitos ligados o tempo todo. Pense em dois cérebros com todas as luzes acesas! 

Darcy e Feynman são a prova viva, por exclusão, da teoria de Colin Wilson de que nós, seres humanos, somos todos zumbis, passamos a vida quase toda no piloto automático.

Senso de humor é outra característica dos dois. Não o senso de humor blasé e egoísta tão em moda nos nossos círculos pseudo-intelectuais, mas um senso de humor de quem se diverte com a estupidez humana sem deixar de se comover com o destino humano. E sem perder o afeto pelos humanos à sua volta, principalmente se forem só humanos, sem títulos, cargos ou posses.

Outro traço em comum: eram questionadores inveterados, indivíduos que nunca tiveram papas na língua, nem medo de contradizer, desafiar ou desmentir qualquer autoridade, por maior que fosse, que tivesse a infelicidade de dizer uma bobagem na sua frente. E o faziam com um sorriso divertido no rosto, sem rancor, sem agressividade, usando apenas a maior arma do intelecto: a verdade dos fatos. 

Usando apenas isto, incomodaram muita gente, enfrentaram tempestades administrativas e políticas, pagaram caro muitas vezes pela sua honestidade intelectual, e fizeram um enorme bem aos países onde atuaram.





sábado, 7 de agosto de 2010

2314) O certo e o errado (7.8.2010)



O fato de que “2 + 2 = 4” exprime a tendência da Natureza a apresentar padrões e relações invariáveis. As quantidades são objetivas; o número é subjetivo. É a mente humana quem cria esse signo em comum entre dois pássaros, duas palavras ou dois dias. O número é uma abstração para ordenar coisas concretas. Quando começamos a conceber níveis mais rarefeitos, como a raiz de menos 2, é que entramos no terreno dos números que não pertencem à Natureza, mas apenas à Cultura. Números que já são mera linguagem, não exprimem coisas. É como a passagem da pintura figurativa para a pintura abstrata.

Já o Bem e o Mal, o Certo e o Errado... Jorge Luís Borges contou um episódio que ilustra bem este conceitos tão elusivos. Num clube chique de Buenos Aires um homem, numa noite de jogatina, perdeu tudo quanto tinha. No dia seguinte, recusou-se a pagar a dívida, alegando que não podia jogar a família na miséria por causa de uma noite de loucura. Borges comenta com sarcasmo a reação horrorizada dos outros cavalheiros portenhos, que passaram a tratar esse indivíduo “como se fosse um leproso”. Para eles, a palavra dada e o compromisso assumido num contexto entre “gentlemen” eram mais importantes do que o destino da pobre família, porque “não observar as dívidas de honra seria cair no anarquismo”.

Existe uma certa lógica no comportamento desses cavalheiros, se quisermos levar em conta apenas as relações matemáticas envolvidas na questão. Um jogo envolve sempre uma disputa entre habilidades matemáticas em que, como se trata de um processo quantitativo, é sempre possível refinar os números até alcançar um desempate. Se os amigos de Borges jogavam roleta, estão disputando a capacidade de prever o comportamento de um elemento aleatório. Se jogavam baralho, estão disputando quem é capaz de realizar combinações mais bem sucedidas com elementos (as cartas) recebidos aleatoriamente. A fascinação matemática que tais atividades despertam em pessoas com esse tipo de mentalidade é enorme. Tão enorme que em muitos momentos deixam em segundo plano coisa como família, filhos, posses, etc.

O Bem e o Mal não são leis da natureza, são construções artificiais inventadas pelos seres humanos. Mas acabaram se revelando úteis, tão úteis quanto os números. O Bem e o Mal não existem num mundo sem seres humanos. Fomos nós que criamos esses conceitos, como criamos os conceitos de Norte e Sul como direções. (Eles existiam apenas como polos magnéticos da Terra; usá-los para orientar-se é criação humana, é Cultura).

O que é mais importante, honrar uma dívida de jogo e mandar a própria família para a miséria, ou dizer “não pago, e pronto”? A resposta a um problema como este define duas formas de cultura bem diferentes. Não chegarei ao ponto de dizer que uma está certa e a outra errada, porque se aderirmos cegamente a qualquer uma das duas vamos ter problemas. Mas são um Norte e um Sul, para quem quiser ver.

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

2313) O estilo de Saramago (6.8.2010)



Nunca terminei nenhum dos romances de José Saramago, embora ache excelentes todos os que li até a metade. Sou um leitor indisciplinado e descontínuo. Prosa mais elaborada me cativa mas me desnorteia. Me força a passar às vezes um dia inteiro lendo e relendo uma página, atrapalhado mas sabendo o quanto aquilo me traz de lucro intelectual e prazer estético. Ótimo – mas é um ritmo de leitura arriscado para enfrentar um romance de 300 páginas. Quando abandono um desses livros não é por estar pensando “ah, que saco, que livro chato, estou perdendo meu tempo”. É com a sensação de que ele me exige um esforço intelectual que não estou em condições de empreender no momento. Melhor interromper a leitura, devolver o livro à estante e pegar, na pilha de “leituras obrigatórias” (ou na de “aquisições recentes”, ou na de “referências necessárias para um trabalho em andamento”, ou na de “releituras de obras lidas na imaturidade”, etc.) algo que flua mais depressa, que possa ser lido no metrô, no aeroporto e na fila do Banco.

Não consigo ler Saramago ou Osman Lins ou Nabokov na fila do Banco, mas consigo ler Roberto Bolaño ou Philip K. Dick ou Isaac Bashevis Singer, que considero tão bons quanto os anteriores, e cuja leitura flui sem se deixar perturbar pelo barulho em volta. Isto coloca de maneira útil a velhíssima e equivocada questão de que escritor bom tem que ser difícil, e que se um escritor é difícil é porque é bom, e se é fácil então certamente deve ser ruim. Jorge Amado (exemplo de escritor que tem coisas muito boas e coisas muito fracas) é sempre fluente, independentemente da qualidade. O que há é que a leitura fluente é aquela em que não precisamos de muito esforço para pegar de volta uma leitura interrompida uma semana ou um mês atrás (o que comigo é muito frequente). Pego o livro que larguei na página 245, volto uma ou duas para me situar, e daí em diante é como se tivesse parado de ler na véspera.

Outros autores não permitem isso. Se o fazemos é ao preço de perder muito do que têm de bom para nos dar. Alguns autores exigem, seja pela densidade da linguagem, seja pela complexidade do enredo, que no momento da leitura tenhamos vívidos na memória centenas de elementos recém-referidos, no parágrafo anterior, na página anterior, no capítulo anterior. Existe uma acústica de ressonâncias que, numa leitura muito interrompida, acabamos sem perceber. Alusões que nos fazem “cair a ficha” se lembramos de algo dito cinco páginas atrás; se já esquecemos (porque a página foi lida na semana anterior), a ficha cai no vácuo.

Voltando a Saramago: o momento do que ele narra é sempre muito nítido, muito visualmente realista e concreto, mas seus enredos gostam de um labirinto. E sua pontuação (de que ele tanto se orgulhava, com motivos) é um irritante cacoete para alguns leitores, que simplesmente não conseguem assimilá-la. Há leitores para quem uma interferência nesse aspecto estraga qualquer prazer.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

2312) “Casanova e a Revolução” (5.8.2010)




Há um subgrupo da ficção histórica que eu chamaria de “Encontros Meta-Históricos”, narrativas em que o autor imagina um possível encontro (que não aconteceu na vida real) entre personagens históricos que foram contemporâneos uns dos outros e que, teoricamente, poderiam ter se cruzado nesta ou naquela circunstância. O que teria resultado desse encontro? 

O primeiro texto desse gênero que me chamou a atenção foi a peça Travesties de Tom Stoppard, que imagina o que aconteceria se se encontrassem em Zurique três indivíduos que viveram lá na mesma época: Vladimir Lênin, James Joyce e Tristan Tzara.

Casanova e a Revolução é um filme de Ettore Scola (1982) que postula um encontro parecido. O escritor e conquistador Giacomo Casanova, o escritor, polemista e pornógrafo Rétif de la Bretonne e o revolucionário norte-americano Thomas Paine viajam na mesma estrada por onde Luís XVI e Maria Antonieta fogem incógnitos de Paris. 

O casal real quer se reunir às tropas anti-revolucionárias prestes a invadir a França para botar a casa em ordem, ou seja, botar o Absolutismo de volta no trono. 

Este episódio ficou conhecido como “A Noite de Varennes”, porque foi nessa cidadezinha que o Rei foi reconhecido, preso e recambiado até Paris e, depois, a guilhotina. E tudo que ocorre em volta, na França conturbada pós-Revolução, é visto e comentado por aqueles três personagens, em seu encontro fictício, improvável mas não impossível. 

O melhor do filme é Marcello Mastroianni. Velho e decrépito, ele faz o papel de Casanova velho e decrépito. E mostra que velhice e decrepitude não necessariamente cancelam a inteligência e o charme de um indivíduo.

O filme é um “road movie” setecentista, o que parece uma contradição em termos, porque quando falamos em “road movies” pensamos em Dennis Hopper, em Wim Wenders, em cineastas beatniks, em andarilhos hippies. Mas estrada é sempre estrada, e a estrada no cinema serve para o mesmo fim, seja ela percorrida por motos ou por carruagens. 

Temos um bloco fixo de personagens que conversam o tempo todo, e enquanto isso a estrada vai passando, o mundo os visita, o país em que estão os cumula de surpresas. Os viajantes veem-se a cada passo desafiados pelos imprevistos do caminho e se safam como podem. 

Uma crítica que li sobre este filme de Ettore Scola reclama que há muita conversa e pouca ação; curiosamente isto me trouxe à mente os romances do século 18, que são exatamente isto. Os romances de Voltaire, Sterne, Diderot, Fielding (e os de Casanova e Rétif de la Bretonne) são romances picarescos em que acontecem relativamente poucas coisas, comparadas às quilométricas discussões filosóficas dos protagonistas. 

Scola dá ao seu filme esse espírito de época, mais difícil de captar e de realizar do que um simples figurino ou cenografia de época. É uma história feita ao perfil do seu tempo, e ao perfil da obra dos escritores que são seus protagonistas.






quarta-feira, 4 de agosto de 2010

2311) A palavra andróide (4.8.2010)



A palavra “andróide” se incorporou ao nosso vocabulário através da ficção científica e da também do noticiário científico. Andróide é um ser artificial que, ao contrário do robô (que é metálico, e apenas imita vagamente a forma humana) é feito de circuitos eletrônicos recobertos com algum tipo de material orgânico ou sintético que o torna parecido a uma pessoa, a ponto de poder ser confundido. O exemplo mais conhecido são os andróides do filme Blade Runner. Na verdade, deveríamos usar dois termos, andróides e ginóides, para designar respectivamente as criaturas com aparência masculina e feminina. Mas isto é a típica reclamação de filólogo. Seria demais esperar que o pessoal da área tecnológica se preocupasse com esse tipo de detalhe.

A primeira menção oficial da palavra, ao que se diz, aparece numa patente para um “Autômato de Brinquedo”, registrada em 1863 em nome de um certo J. S. Brown, do Distrito de Colúmbia, inventor de “um novo e aperfeiçoado (tipo de) autômato de brinquedo ou boneco andróide”. Isto aconteceu quase um século antes de Philip K. Dick escrever Do Androids Dream of Electric Sheep? (“Será que os Andróides sonham com carneiros elétricos?”), o livro que deu origem a Blade Runner, escrito em 1966 e publicado em 1968.

Note-se que usamos também termos como “antropóide”, para designar, de preferência, animais que têm traços semelhantes ao do homem, principalmente macacos e primatas em geral; e também “humanóide”, muito usado na FC para indicar raças extra-terrestres que evoluíram, por conta própria, de maneira semelhante à nossa e que por isso têm aparência física semelhante à nossa.

Não é improvável que venhamos a produzir andróides capazes de, em certa medida, não apenas substituir seres humano, mas até de serem confundidos com eles. Isto pode se dar através do nosso avanço em algumas áreas principais:

1) Robótica. Estamos avançando bastante na produção de estruturas mecânicas de todo tipo, capazes de simular o movimento humano; essas estruturas podem ser no futuro acopladas a um conjunto artificial de órgãos, tecidos, sistema nervoso, etc. 2) Informática e Inteligência Artificial. Desenvolvimento de chips, processadores, circuitos integrados cada vez menores criando redes cada vez mais complexas; e os softwares embutidos para fazer com que tudo isso seja capaz de ter cinco sentidos (ou apenas os mais urgentes: visão, audição, tato), de se comunicar, exercer tarefas, tomar decisões simples. 3) Células-Tronco. Se as células-tronco, que só agora começam a ser exploradas a sério, servirem realmente para reconstituir medulas e órgãos danificados, não demorará muito a produção de órgãos, nervos, neurônios, músculos, etc., que possam ser acoplados. 4) Tele-ensino através de TV, games de treinamento, emissões de rádio, download de programas e “dicionários”, que possibilitarão ao andróide um armazenamento maior e processamento de informações mais rápido do que os nossos.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

2310) O caba bêbo (3.8.2010)



O bom do caba bêbo é que tudo é possível. Não tou dizendo que o caba bêbo consegue realizar qualquer coisa. “Fôra, fazê-lo, assaz temerário”. Mas ele acha que pode! Esta iluminação mística o assalta até no mictório do bar, quando tenta achar botões onde só existe um fechicler. Pouco importa! O bêbo sente-se potencializado mentalmente, capaz de ascender píncaros, de sobrevoar nebulosas, de correr para a marca do pênalte e fazer o gol de letra e com cavadinha, aos 48 do 2o. tempo da decisão da Copa. Direis agora: “Tresloucado amigo! Vai dormir que teu mal é sono!...” Não, não é. Engana-se quem pensa que pálpebras pesadonas são curva descendente. É que a cabeça do bêbo está passando-marcha em todo o seu poder de processamento, o uso de CPU está esbarrando no ridículo limite de 100%, ele está alçando voos, seu nome nesse momento é Zunindo Vertiginoso, ele acaba de colapsar em soluções cristalinas problemas milenares como a quadratura do círculo, o sorriso da Gioconda, a morte de Lee Oswald, o teorema de Fermat, o final de “Blow Up”, a constante de Eddington... O caba bêbo acessa vislumbres. Usa cordilheiras como trampolim. Magnifica os quarks do universo até ver neles universos tão mais complexos quanto mais cantábiles. Ninguém o subvenciona, mas ele raciocina, impertérrito, como se cada sinapse levada a cabo lhe rendesse 0,10 centavos como ocorre na TV interativa. Pensem na prodigiosa força geratriz que o Brasil está perdendo, um Itaipu de neurônios trovejando comportas - para a bruma, através da bruma, rumo ao coisíssima nenhuma!... Onde estão as autoridades competentes que não concedem ao bêbo uma Bolsa para simplesmente pensar, e só pensar? Pensam que pensar é fácil? Antes fosse! Pensar implica compromissos, implica em deixar de frequentar festas, deixar de ir a estréias e a lançamentos apenas para ficar puxando aros metálicos de cerveja, escutando aquele espirro gelado, e cumprindo o antiquíssimo ritual que já tinha lugar nos círculos de Stonehenge ou em outros oratórios místicos onde os avatares promoviam luaus esotéricos em que todo mundo tinha direito a pensar durante uma noite inteira, desde que na manhã seguinte não fizesse muita questão de lembrar do que tinha acontecido e retornasse para suas casas tirando a grama do cabelo e dizendo à família que tinha perdido o último ônibus e fora forçado a dormir num estábulo de uma fazenda cuja proprietária, lampião em punho, lhe indicara o proverbial monte de feno dos filmes de faroeste, só que junto a ele encontrava-se outro monte de feno proverbial, o dos romances-sem-capa do século 19, sobre o qual estava deitada uma aldeã com o rosto e os atributos secundários de uma atriz de Hollywood cujo nome será melhor omitir. O mundo do bêbo é assim, compatriotas: uma cebola à qual é adicionada uma nova camada a cada novo pensamento concebido, e onde tudo colapsa numa revelação sobrenatural: não são botões, idiota, é um fechicler. Zzzzzzip! Ufa.