Artigos de Braulio Tavares em sua coluna diária no "Jornal da Paraíba" (Campina Grande-PB), desde o 0001 (23 de março de 2003) até o 4098 (10 de abril de 2016). Do 4099 em diante, os textos estão sendo publicados apenas neste blog, devido ao fim da publicação do jornal impresso.
sexta-feira, 27 de agosto de 2010
2331) A conexão Zevaco – Guimarães Rosa (27.8.2010)
Uma das minha leituras preferidas na infância foi a dos folhetins de capa-e-espada de Michel Zevaco (1860-1918), famoso pelas aventuras do Cavalheiro de Pardaillan.
Um livro de Zevaco, Nostradamus, transcorria em parte no “bas-fond” parisiense do século 14, e havia um quarteto de personagens, meio marginais, cujos nomes tinham uma sonoridade rabelaisiana. Chamavam-se Corpodibale, Strapafar, Bouracan e Trinquemaille.
Eram, por assim dizer, uma turma tipo Malagueta, Perus e Bacanaço, misturada com Lino Pedra Verde e Quincas Berro Dágua.
Ao saber que Rosa tinha um livro chamado Corpo de Baile, tive a idéia estapafúrdia de que Rosa tinha lido Zevaco, e o título de seu livro era uma homenagem ao truão francês! A Serpente da Paranóia Concatenadora acendeu seus olhos esverdeados dentro de mim e começou a rastejar.
Qual não foi minha surpresa, anos depois, quando li do começo ao fim o Grande Sertão, e os outros truões do Pátio dos Milagres de Zevaco começaram a aparecer, de um em um!
Veja-se o episódio da batalha na Fazenda dos Tucanos, entre o bando de Zé Bebelo e o dos “hermógenes”. Na página 328 da 2a. edição, Zé Bebelo, cercado e sob tiroteio, envia o Joaquim Beijú e o Quipes com bilhetes, e Riobaldo fica em dúvida se aquilo é um pedido de socorro ou uma traição. E diz:
“Só que eu ia sempre vigiar Zé Bebelo. Ele trair, vivo, eu não deixava. Zé Bebelo tinha sua espécie de natureza – que servia ou atraiçoava? Ah, depois eu ia ver. Ah, eu ia ver se, no engasgo da hora, ele ia querer se estrapafar”.
Anotei.
À pág. 399 dessa edição, no episódio das Veredas Mortas, Riobaldo, tremendo de frio sob as “absolutas estrelas”, espera o Diabo, e monologa:
“Porque a noite tinha de fazer para mim um corpo de mãe – que mais não fala, pronto de parir, ou, quando o que fala, a gente não entende? Despresenciei. Aquilo foi um buracão de tempo”.
Anotei de novo.
E vem o episódio crucial em que Riobaldo encara Zé Bebelo e pergunta, diante do bando: “Quem é que é o chefe?”. Nesse confronto de machos-alfa, Zé Bebelo vacila, recua: o poder do Tatarana é maior. Zé Bebelo se despede do bando, dizendo que não sabe ser segundo nem terceiro. Pega suas coisas e vai embora. Riobaldo manda o bando se organizar e parte à frente dele, pela primeira vez investido na “potente chefia”. E registra, à pág. 414:
“Dali a gente tinha logo de sair, segundo a regra exata. Estradeei. Nem olhei para trás. Os outros me viessem? Cantava o trinca-ferro.”
Anotei também; com uma interrogação entre parênteses.
Estarei delirando? Rosa tinha, em sua biblioteca, uma edição francesa de “Les Pardaillans” de Zevaco (cf. Suzi Frankl Sperber, Caos e Cosmos). Costumava escrever aos jorros, sem freios, de modo quase mediúnico, e muito do seu estilo repousa no palavra-puxa-palavra. Não me admiraria que, sem perceber, sem intenção alguma, ele estivesse evocando em seu inconsciente verbal os marginais de Michel Zevaco e seus sonoríssimos nomes.
Est artigo está incluído no meu livro A Nuvem de Hoje, Campina Grande, Editora da UEPB/Selo Latus, 2011.)
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