quarta-feira, 14 de julho de 2010

2262) O avanço dos mares (8.6.2010)



Manhã de domingo no Recife. Estou no 8o. andar de um hotel à beira-mar. Diante do edifício, gigantesco, ocupando metade do espaço visível e perdendo-se no horizonte, o Monstro me encara. Parece injusto chamá-lo assim, porque sua visão antes encanta do que aterroriza, e na verdade não existe nele nada de maligno. É apenas sua imensidão sem controle que nos permite ver nele aquilo que Virgílio, na Eneida, chamava de “monstrum horrendum, informe, ingens, cui lumen ademptum” – “um monstro horrendo, disforme, imenso, sem olhos”.

Todos veem o Mar, só eu vejo o Monstro. A visão da minha janela lateral está totalmente tomada pelo vulto maciço do hotel vizinho, um leviatã de concreto, pastilhas cinzentas e basculantes em vidro fumê. Preciso debruçar-me e olhar para a direita para vê-lo. São faixas sucessivas, superpostas, de cada qual mais distante que a outra. Embaixo, a Avenida Boa Viagem, seu trânsito da direita para a esquerda, as bicicletas, pessoas que correm ritmadamente, de óculos blindados. Mais acima, a primeira faixa, de areia clara, pontilhada por um jardim de guarda-sóis em azul e branco. Mais acima, a faixa escura, rajada, da piscininha formada pela couraça irregular dos arrecifes, onde crianças pulam nas suas boiazinhas; os arrecifes propriamente ditos são uma mancha negra paralela à avenida, e as ondas os recobrem sem cessar com suas espumas brancas. Mais para cima ainda, uma faixa mais larga (uns 20 metros) de água verde-clara como a líquida esmeralda dos olhos de Iracema, ou, menos literariamente, como caldo de cana recém-tirado. Depois desta, uma faixa maior, cerca de 50 metros, de um verde puxando mais para o azulado; depois desta, outra faixa de uns 200 metros de um tom mais azulado ainda; e coroando tudo, como um muro que veda o horizonte, uma faixa estreita mas compacta de um azul profundo, com um tanto do cinza do cimento, e do roxo de algas remotas.

Eis o monstro. Volto à poltrona e abro o livro em que Kim Stanley Robinson descreve o degelo da Antártica: “Gigantescas placas de gelo, aquecendo-se, rachando, deslizando por sobre a terra que as suporta abaixo do nível do mar, flutuando oceano afora em imensos blocos, deslocando muito mais água do que quando estavam fixas ao continente. Se todo esse gelo se desprender, o nível do mar subirá sete metros. Um quarto da população mundial será diretamente afetado, com prejuízos estimados, por baixo, em cinquenta trilhões de dólares”.

O Monstro não é cruel nem feroz. É um conjunto de processos físicos no qual interferimos, encorajados por não recebermos reações adversas imediatas. Isso nos faz aumentar o grau de intervenção, porque na verdade não temos o propósito de intervir, e sim o de produzir mais e mais energia para nossa conveniência. Despertamos o Monstro, e ele não é um Monstro que persegue ou dilacera. Ele apenas se expande e ocupa mais espaço, ocupa esta precária Atlântida em que vivemos.

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