quinta-feira, 8 de julho de 2010

2250) A República do Recurso Infinito (25.5.2010)



Yoseph B desceu as escadarias do Ministério das Intimações e parou na calçada, com o envelope pardo na mão. Gaivotas negras esvoaçavam de encontro a um céu branco. Na esquina, um vendedor de amendoim torrado acenou, chamando-o. Ele foi até lá e comprou um pacotinho, que lhe aqueceu os dedos. “Coragem”, disse o vendedor, soprando o fogareiro; “pelo seu aspecto imagino que o mandaram para o Departamento dos Certificados”. Yoseph ergueu as sobrancelhas: “Como soube?”. “Ah,” disse o outro, “é para onde vai a maioria que sai daqui. E pelo tamanho do seu envelope, imagino que está envolvido num caso de confusão de identidades”. “Exatamente”, disse ele, mastigando melancolicamente os carocinhos duros e salgados. “Me confundiram com um nome parecido”.

“Pois vou lhe dizer como vai ser seu trajeto,” disse o vendedor, oferecendo-lhe um copinho plástico com chocolate quente, que ele aceitou. “Do Departamento dos Certificados você talvez seja remetido ao Instituto de Antropometria, onde seu corpo foi registrado ao nascer. Depois, irá ao Departamento de Genética Cotidiana, onde fará exames de sangue, DNA...” Yoseph murmurou; “Isso demora? Sou um homem ocupado.” O vendedor riu. “Todos somos ocupados, mas nenhum de nós é inocente”. Yoseph ouvira esse trocadilho de mau gosto há menos de dez minutos, no guichê onde fora atendido, e sorriu sem entusiasmo. O homem continuou: “Tenha em mente que você foi vítima de um engano, mas este engano estava previsto pela própria máquina que o cometeu. A reorganização administrativa de 2078 nos tornou o país mais organizado do mundo.”

“Para os maníacos da eficiência,”, prosseguiu o vendedor, “organizar não é produzir sínteses: é subdividir, é multiplicar instâncias. O Paradoxo de Zenão aplicado à administração das vidas humanas. Após a Grande Crise, com o caos imperando em nosso país, a centralização federal foi entregue a pessoas com a volúpia de distinguir, de subdividir, de bifurcar, de imaginar tudo que por mais improvável não fosse impossível, e criar um mecanismo burocrático destinado a lidar com essa eventualidade quando acontecesse. Hoje podemos dizer que para cada problema humano há uma Secretaria ou uma Divisão ou um Setor, entre os milhares que há em cada um dos milhares de Departamentos em que se subdividem as centenas de Institutos que por sua vez compõem as dezenas de Ministérios. Você será levado a instâncias cada vez mais específicas, cada vez mais especializadas. À medida que penetrar nos labirintos da administração pública irá se maravilhando ao perceber um mundo cada vez mais nítido e preciso. Quem sabe um dia chegue diante de uma porta envidraçada onde verá escrito algo como: Setor de Correção de Erros de Identificação Cometidos Contra Yoseph B”. “Como sabe o meu nome?” perguntou Yoseph B, assustado. Mas o homem e seu fogareiro tinham desaparecido, e no asfalto negro viam-se apenas, riscadas a giz, as palavras: “Vendedor de Amendoim”.

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