Artigos de Braulio Tavares em sua coluna diária no "Jornal da Paraíba" (Campina Grande-PB), desde o 0001 (23 de março de 2003) até o 4098 (10 de abril de 2016). Do 4099 em diante, os textos estão sendo publicados apenas neste blog, devido ao fim da publicação do jornal impresso.
domingo, 13 de junho de 2010
2142) “O Conforto dos Estranhos” (19.1.2010)
The Comfort of Strangers é um romance de Ian McEwan, escritor inglês cujo livro mais conhecido aqui no Brasil parece ser Desejo e Reparação (Atonement), que não li. Acabei lendo este, que é de 1990, porque assisti algum tempo atrás o filme feito por Paul Schrader, ambientado em Veneza e impregnado daquilo que Macalé chamava de “morbeza romântica”, a mistura perigosa de morbidez com beleza. O livro de McEwan é um romance de crime, uma dessas histórias em que uma situação ominosa vai se desenhando aos poucos, com a implacabilidade de uma tragédia grega ou de dois petroleiros em rota de colisão.
Colin e Mary são um jovem casal inglês fazendo turismo numa cidade histórica européia, que em momento algum é identificada (o autor não diz sequer em que país a história acontece). Vários detalhes (canais, barcos, uma praça principal) sugerem Veneza, e foi em Veneza que Paul Schrader ambientou o filme; mas um dos charmes do livro é o fato de que sua Veneza é implícita, sugerida nas entrelinhas. Em momento algum o autor fornece qualquer nome próprio (da cidade, dos pontos turísticos, das pessoas, das ruas); em nenhum momento ele diz que ali se fala italiano; mas mesmo quem não tenha visto o filme irá pressentindo a cada capítulo que tudo aquilo ocorre em Veneza.
Essa cidade onipresente, invisível, nunca nomeada mas inconfundível, é a imagem que melhor exprime o funcionamento desse romance em que “a coisa principal” nunca é dita às claras, embora seja desvelada o tempo todo. Porque Colin e Mary logo conhecem um casal mais velho, Robert e Caroline, e entre eles se estabelece uma relação mórbida de sedução e repulsa que resulta num final cruel, inexplicável e arrepiante. Sabemos, ao terminar a leitura, o que aconteceu, e temos uma idéia aproximada de como deve ter acontecido. Podemos até mesmo arriscar um “por quê”, uma explicação psiquiátrica para o que sucede. Depois de nove capítulos de preparação, o capítulo final não nos traz uma surpresa (é uma daquelas histórias que a gente lê pensando “isso não vai acabar bem”), mas um mistério.
O Conforto dos Estranhos pertence ao sub-gênero que chamo de “Pesadelo Turístico”: histórias de viajantes que vão para lugares distantes em busca e excitação e aventura, e encontram o horror. (Lembrei de Song of Kali de Dan Simmons, Don’t Look Now de Daphne du Maurier, O Caminho do Poço Verde de Rubem Figueiredo, o filme Kalifornia de Dominic Sena.) Mexe com profundidades inquietantes da mente humana, como certos livros de Ruth Rendell ou de Patricia Highsmith. Existe no casal mais velho a malignidade de quem vive em função de um vício torturantemente cultivado. E existe no casal mais jovem a atração pelo abismo, o “demônio da perversidade”. Julio Cortázar já observou que a Vitimologia é uma ciência tão legítima quanto a Criminologia, porque em muitos casos vê-se na relação entre criminoso e vítima uma “aura de fatalidade e consentimento”.
Braulio, vc já leu Jardim de Cimento deste autor? É um livro fininho e genial. Vale a pena. Muito.
ResponderExcluirNo mais, adorei o eu resumo crítico.