quinta-feira, 3 de junho de 2010

2112) “Navios negreiros” (15.12.2009)



A editora paulista Comboio de Corda lançou, num volumezinho pequeno e charmoso, com excelentes ilustrações de Maurício Negro, uma edição conjunta dos poemas homônimos “O Navio Negreiro”: um de Henrich Heine (1797-1856) e o outro de Castro Alves (1847-1871). A organização e os textos críticos são de Priscila Figueiredo, que examina e compara os dois poemas. Confesso que não conhecia o de Heine, nem sabia sequer que o poeta alemão tivesse escrito sobre tráfico de escravos. Este livro fornece informações sobre todo o contexto que inspirou os poemas, além de analisar as semelhanças e diferenças entre os dois.

O poema de Castro Alves é conhecido por todo brasileiro que se preza. Desde aquela clássica elisão que o faz começar com um apóstrofo: “’Stamos em pleno mar...” Tudo bem que era naquela época um recurso mais comum do que é hoje, mas não deixa de ser uma prova de coragem iniciar um poema com uma licença poética logo na primeira linha, na primeira palavra, no primeiro caractere! É um dos poemas mais bem estruturados do poeta baiano, ao qual a influência de Victor Hugo ensinou a compor poemas feitos de sucessivas partes, como os atos de uma peça, cada uma delas impondo um novo metro, um novo tom, numa concepção rítmica que dá ao todo a sensação de uma complexa suíte musical. É o caso deste poema, e também o de “Destruição de Jerusalém”, que foi escrito (fiquei sabendo agora, abismado) aos quinze anos de idade.

O poema de Heine é mais curto e mais simples. Dividido em duas partes, é uma sucessão de 36 quadras rimando ABCB. Seu tom é mais direto e menos oratório (previsivelmente!) do que o de Castro Alves. Heine nos mostra o navio através dos olhos dos traficantes que o conduzem, os quais se desesperam ao ver que a taxa de mortalidade dos negros só faz aumentar durante a viagem, e, para evitar que morram todos de banzo, trazem-nos para o convés e os fazem dançar, debaixo de chicote, ao som de instrumentos musicais tocados pelos tripulantes. É a mesma cena dantesca descrita pelo baiano (“Vibrai rijo o chicote, marinheiros! / Fazei-os mais dançar!”).

Priscila Figueiredo faz uma boa análise da frieza do espírito capitalista que move os personagens de Heine (“Seiscentos negros consegui / por uma nica, em Senegal; / à carne rija, aos tendões tesos / não há ferro que seja igual. // Ofereci em troca aguardente / miçangas, estanho e tecido. / Consigo quase mil por cento / se só metade houver morrido”). E lembra, com razão, que as três últimas estrofes do poema de Castro Alves estão entre as mais belas da poesia brasileira: “E existe um povo que a bandeira empresta / pra cobrir tanta infâmia e cobardia (...)... Auriverde pendão da minha terra / que a brisa do Brasil beija e balança (...)... Fatalidade atroz que a mente esmaga! Extingue nesta hora o brigue imundo (...)”. Um excelente exemplo do mesmo tema sendo trabalhado por duas inteligências e sensibilidades diferentes.

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