quinta-feira, 3 de junho de 2010

2110) Carpeaux e a FC (12.12.2009)



Num artigo de 1959, Otto Maria Carpeaux desdenhava a literatura de ficção científica nestes termos: “Os habitantes de planetas na ‘science-fiction’, dotados de forças físicas e mentais superiores às nossas, são reedições dos gênios astrais da época pré-copernicana. Mais exatamente: são anjos. ‘Science-fiction’ é, inconscientemente, literatura pseudo-religiosa, literatura de edificação do homem que já não suporta sua solidão no Universo. (...) O sonho do desejo de conquistar o espaço produz seu efeito psicológico contrário. É o medo de uma catástrofe cósmica e da destruição do mundo. (...) A psicose é caracterizada pela perda total do contato com a realidade. Literariamente, a consequência é a baixa realidade: literatura de cordel.”

Como os leitores devem lembrar, durante muitos anos os respeitáveis dicionários brasileiros, em seu verbete sobre a palavra literatura, incluíam a menção: “Literatura de cordel – literatura de baixa qualidade”. É uma visão de classe que perdurou durante muitos anos e que fortaleceu muitos preconceitos. Para esses lexicógrafos, a boa literatura era praticada pelas elites. O que era praticado pelo povo era de má qualidade, já que o povo não tinha formação cultural e não poderia escrever bem, não poderia produzir boa literatura.

Algo parecido ocorre hoje com o termo “axé-music”, que surgiu para designar um conjunto de ritmos, instrumentações e danças com origem nos trios elétricos baianos, e que hoje virou um sinônimo de “música ruim”. Quando qualquer crítico musical da nossa imprensa precisa usar um termo pejorativo, usa “axé-music”, e a imensa maioria dos seus leitores aceita essa equação simplória. Por que? Porque o leitor já ouviu algumas dezenas de canções da “axé-music”, não gostou, achou que são todas parecidas, e se as que ele ouviu são parecidas todas as demais (que são dezenas de milhares) devem ser também. Em literatura, a expressão “livro de auto-ajuda” cumpre a mesma função preconceituosa.

Não tenho o Dicionário Aurélio, por exemplo, mas hoje o Houaiss define assim a literatura de cordel: “Literatura popular (especialmente contos, novelas e poesias) de impressão barata, exposta à venda em cordéis, especialmente em logradouros públicos do Nordeste do Brasil”. Em vez de um juízo de valor cheio de preconceito, uma descrição clara e sensata. Pode-se comparar a ficção científica à literatura de cordel? Claro que sim. Em ambas convivem o primitivo e o sofisticado, o antiquíssimo e o contemporâneo, o interesse comercial imediatista e o sonho da arte pela arte. Em ambas existe a convivência entre elementos fantasiosos e elementos realistas que não são enxergados por ninguém que não leia aquelas histórias – são uma forma de percepção do real que é exclusiva delas. Cordel e FC cumprem aquilo que a teoria literária chama de “função gnoseológica da arte”: produzir um tipo de conhecimento do mundo que não é proporcionado por nenhuma outra forma de literatura.

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