Artigos de Braulio Tavares em sua coluna diária no "Jornal da Paraíba" (Campina Grande-PB), desde o 0001 (23 de março de 2003) até o 4098 (10 de abril de 2016). Do 4099 em diante, os textos estão sendo publicados apenas neste blog, devido ao fim da publicação do jornal impresso.
terça-feira, 1 de junho de 2010
2104) Kurtz (5.12.2009)
O personagem central de O Coração das Trevas de Joseph Conrad é Kurtz, que no filme Apocalipse Now de Coppola foi transformado em "Coronel Kurtz” e interpretado por Marlon Brando. Kurtz é um personagem propositalmente envolto por Conrad num véu de dúvidas, contradições e lacunas. Em primeiro lugar, porque o livro se estrutura com um narrativa-moldura: um grupo de ingleses passeia de barco na foz do Tâmisa, e um deles, Marlow, conta para os amigos a aventura que viveu na África, quando foi encarregado de comandar um barco a vapor rio acima para resgatar Kurtz, chefe de um entreposto comercial no coração da floresta. Tudo que sabemos de Kurtz é contado por Marlow, cujo conhecimento também está contaminado por todas as histórias, elogiosas e terríveis, que ouve a respeito de Kurtz durante a viagem, de modo que quando os dois se encontram pessoalmente sua impressão sobre o outro já está irremediavelmente condicionada.
Kurtz é a quintessência do explorador colonialista europeu (“Sua mãe era meio-inglesa, seu pai era meio-francês; toda a Europa contribuiu para a criação de Kurtz”), e traz em si os extremos dessa contradição: o discurso civilizatório (não muito distante, em termos morais, do discurso dos navegantes portugueses que pretendiam salvar a alma dos selvagens da América através da fé cristã) e a truculência sádica de quem se vê diante de povos militarmente, culturalmente e economicamente indefesos.
Conrad dá uma indicação concreta disto quando faz chegar às mãos de Marlow um documento escrito por Kurtz, encomendado pela “International Society for the Suppression of Savage Customs”. São dezessete páginas de texto cerrado, eloquente, em que Kurtz afirma: “Nós, brancos, no estágio de desenvolvimento a que chegamos, devemos necessariamente parecer aos selvagens seres sobrenaturais – nós os abordamos com o poder de verdadeiras divindades, e pela simples manifestação da nossa vontade podemos exercer uma influência praticamente ilimitada para o Bem”. Mas Marlow, ao folhear o relatório, vê na última página um rabisco feito às pressas, com mão vacilante, que diz: “Tem que exterminar esses brutos!”. São os dois lados do colonialismo: no início as boas intenções e o altruísmo civilizatório; no fim, o horror.
O que mais impressiona Marlow a respeito de Kurtz é sua “magnífica eloquência”. Por mais de uma vez ele assim se refere a Kurtz: “Uma voz! Uma voz!” É uma repetição de rendição absoluta ante o carisma do discurso verbal de outro indivíduo; e essa repetição ecoa as últimas palavras que ele vê Kurtz pronunciar no instante de morrer, durante a viagem de volta: “O horror! O horror!”. Como disse Eliot, em “The Hollow Men”: “Nossas vozes ressequidas, quando sussurramos juntos, são quietas e sem sentido, como o vento no capim seco, ou as patas das ratazanas sobre cacos de vidro na secura do nosso porão. (...) É assim que o mundo se acaba: não com uma explosão, mas com um ganido”.
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