Artigos de Braulio Tavares em sua coluna diária no "Jornal da Paraíba" (Campina Grande-PB), desde o 0001 (23 de março de 2003) até o 4098 (10 de abril de 2016). Do 4099 em diante, os textos estão sendo publicados apenas neste blog, devido ao fim da publicação do jornal impresso.
segunda-feira, 17 de maio de 2010
2054) Tratados de versificação (8.10.2009)
Sempre que ouço a expressão usada no título acima me vem à cabeça um trocadilho atribuído, se não me engano, a Emílio de Menezes. Numa roda de amigos, alguém pergunta pelo poeta Fulano, autor de um desses tratados, e que há algum tempo, adoentado, não aparecia para bater papo na Confeitaria Colombo ou em outro reduto literário carioca. Emílio respondeu: “Desde pegou uma gripe ele tem tratado de ver se fica são”.
Os tratados de versificação, com suas complicadas regras de métrica, acentuação, prosódia, ritmo e outros efeitos, foram um inestimável instrumento e um permanente pesadelo dos poetas de outras eras. Ensinar a um leigo como se cria um verso ritmado é uma tarefa tão cansativa quanto ensinar um adulto a ler. Por que motivo tantos poetas, na hora da escrita, preferem contar as sílabas métricas batendo com o pé no chão ou, como dizia Dimas Batista, “contando nos dedos pra metrificar”? Porque sabem instintivamente que a poesia é feita com o corpo, nasceu do corpo, e não do intelecto. A versificação é uma intelectualização de um processo rítmico que o corpo sempre executou sem ter que recorrer a raciocínios. Foi a poesia escrita que intelectualizou esse processo e o distanciou do corpo.
A poesia é oral. Nasceu sendo falada ou cantada. Quando alguém criou o primeiro poema escrito da história da Humanidade, provavelmente o fez escrevendo com caracteres cuneiformes em tabuinhas de argila, na antiga Suméria ou na Babilônia. Foi um momento histórico: o primeiro poema que, sem ser dito em voz alta por ninguém, foi criado diretamente através de sinais gráficos que exprimiam sons. Porque até então, durante muitos milhares (talvez dezenas de milhares de anos) os poemas longos e complexos de todas as culturas que existiam haviam sido criados oralmente, em sociedades onde não existia alfabeto. As pessoas pensavam os versos, diziam-nos em voz alta, outras pessoas escutavam, repetiam, decoravam, e os poemas eram passados adiante, ao longo dos anos e dos séculos, sem que houvesse necessidade de uma versão escrita. Quando esta necessidade surgiu, porque as populações cresceram, e as sociedades tornaram-se muito complexas, os poemas passaram a ser escritos.
Daí a dificuldade de explicar por escrito um processo auditivo e oral. Poetas não contam sílabas. Eles encaixam palavras numa cadência ou numa melodia. Poetas não contam vogais e consoantes: eles apenas articulam sons. O poema oral e a letra de música são percebidos intuitivamente pelo nosso ouvido. A nossa fala se amolda às cadências da recitação e do canto sem que a gente precise recorrer a conceitos como “sílabas”, “notas musicais”, “ditongos”, etc. O poema escrito é uma conquista de sociedades complexas, mas não é necessariamente superior ao poema falado. A poesia nasceu falada. Enquanto os seres humanos usarem a fala para se comunicar, a poesia falada e cantada será uma das suas formas de expressão.
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