Artigos de Braulio Tavares em sua coluna diária no "Jornal da Paraíba" (Campina Grande-PB), desde o 0001 (23 de março de 2003) até o 4098 (10 de abril de 2016). Do 4099 em diante, os textos estão sendo publicados apenas neste blog, devido ao fim da publicação do jornal impresso.
domingo, 16 de maio de 2010
2050) “Terra em Transe” (3.10.2009)
Liguei a TV por acaso e vi a imagem em P&B de um mar filmado de cima para baixo, ao som de vozes e atabaques de candomblé. Era a primeira cena de Terra em Transe, de Glauber, filme que eu não revia há uns dez anos. Plantei-me ali em frente e só saí quando acabaram os letreiros finais e voltou o logotipo do Canal Brasil. Tenho o DVD em casa, mas ver na TV é diferente. Não sei por que. A imagem é praticamente a mesma. O DVD tem a vantagem dos “extras”, a vantagem de poder parar, voltar, ver de novo... Mas ver o filme passando na TV a cabo nos dá uma sensação de vida real. Aquilo está acontecendo, independente de nossa vontade. Eis uma boa definição para vida real: algo que não depende de nós para continuar acontecendo. Ver o filme na TV me dá a sensação de estar numa experiência coletiva como a da sala do cinema, de estar vendo aquilo na companhia, mesmo implícita e virtual, de um bocado de gente. O DVD é uma experiência solitária, intransferível, não compartilhável.
Terra em Transe é meu filme preferido de Glauber, acho que por ter sido o primeiro que vi, em 1968 (só assisti Deus e o Diabo algum tempo depois). O impacto que senti foi de um tiro de canhão na caixa-dos-peitos. Glauber foi o rei do filme B, do filme feito com recursos toscos. Ele pegava uma dezena de excelentes atores que eram seus amigos, uma parelha respeitável de fotógrafos (Barretão e Dib Lufti), e saía de rua afora como quem puxa sozinho um bloco de carnaval. Hoje os problemas técnicos aparecem muito mais, principalmente os de sonorização. Glauber dublava as vozes dos atores; praticamente não há som ambiente, são apenas as vozes, e por trás delas uma cacofonia de efeitos que parecem uma “Revolution 9” dos Beatles “avant la lettre”: é jazz, é tiroteio, é rufar de bateria, é vozerio de multidão. A impressão é a menos realista possível.
Na época eu não conhecia as locações do filme, que hoje me são familiares: o Parque Lage (cenas do governador Vieira, José Lewgoy), o Teatro Municipal (cenas com Porfírio Diaz, Paulo Autran). O Eldorado fictício do filme me lembrava um conjunto de arquiteturas barrocas numa paisagem amazônica; aquilo parecia mais Manaus do que o Rio de Janeiro. O teatralismo delirante das falas e das interpretações está aqui no ponto ideal, ponto que infelizmente seria ultrapassado nos filmes que Glauber fez nos anos 1970. As críticas políticas são surpreendentemente atuais. E o fascista Diaz está a cara do atualmente grisalho Fernando Collor, inclusive “o olho rútilo e o lábio trêmulo”. Só falta alguém pegar os dois e fazer uma montagem-paralela no YouTube.
Continua a ser meu filme preferido de Glauber. É uma explosão de criatividade e erros, de improvisação criativa e precariedade técnica, de melodrama político e semi-documentarismo sem roteiro. Como obra de arte cinematográfica, tem virtudes e defeitos. Como retrato de sua época e do seu autor, não tem igual.
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