Artigos de Braulio Tavares em sua coluna diária no "Jornal da Paraíba" (Campina Grande-PB), desde o 0001 (23 de março de 2003) até o 4098 (10 de abril de 2016). Do 4099 em diante, os textos estão sendo publicados apenas neste blog, devido ao fim da publicação do jornal impresso.
quarta-feira, 12 de maio de 2010
2035) Anotações para um conto (16.9.2009)
Ali está a Casa Grande, ainda de pé depois de século e meio, habitada por quatro sobreviventes da família dos Severos, todos com mais de sessenta anos. Mantêm a antiga pose de senhores de terras e de escravos, mantêm o orgulho do sobrenome, que se ramifica por todo o Estado, mas venderam tudo o mais que tinham. Daquela colina onde a casa está postada, todos os horizontes já se erguem em terra alheia. Ficaram apenas com este pequenino feudo de alguns quilômetros em torno da colina; e com o vale onde se estende o Brejo.
Pronto. Eis o Brejo. Encalhado entre dois morrotes cobertos de matagal e a margem do Rio das Cobras. Aqui, o solo é empapado, turfoso, enegrecido por uma lama que brota lá de baixo. É um local que parece atrair e sorver reses extraviadas, meninos imprudentes. Aqui e ali se vêem cruzes toscas de galhos, deixadas por famílias que seguiram até a borda daquele declive as pegadas de alguém que não voltou. Desafetos dos antigos senhores da terra eram trazidos até ali, com os pulsos atados aos tornozelos, e atirados do alto de um barranco. Perto dali, o rio corre, rumoroso, rápido, por entre pedras pontiagudas.
Dando a volta a um dos morros, estão as ruínas enegrecidas da casa onde uma família inteira ardeu numa noite remota. Era um dos filhos do Severo que reinava naquela época. Morava ali, a uma cavalgada curta da casa do pai, com quem entrou em questão por causa de escrituras e posses. Era o que tinha herdado o temperamento raivoso do velho. Num almoço onde explodiu um bate-boca, foi esbofeteado pelo pai e disparou dois tiros no seu peito. Fugiu e refugiou-se em casa. O velho não morreu, e da cama mesmo deu a ordem. Os capangas foram lá de tochas em punho. Restam apenas as pedras queimadas; da família não ficou o que enterrar.
Mais adiante, a Curvinha. Ganhou esse nome por ser um desvio semicircular da estrada retilínea que leva ao vilarejo, desvio criado para deixar intacta a sepultura de Cimério Braz. Tendo declarado guerra desigual ao poderoso clã, Cimério foi desfeiteado em público por Chico Severo, o patriarca, em cujo rosto cuspiu de imediato, jurando que os Severos só voltariam a cruzar a estrada que atravessava suas terras se passassem por cima do seu cadáver. No dia seguinte, seis jagunços ali o sangraram e enterraram, no meio da estrada, para que sua jura se cumprisse. Mas o povo, em respeito ao morto, preferiu arrodear, e sua sepultura hoje vive coberta de mato intocado, porque depois nem mesmo os Severos tiveram de coragem de pisar em cima dela.
Seguindo adiante, entra-se num cerrado brabo de terra pedregosa, galhos ressequidos e cinzentos. A certa altura, erguem-se lajedos escuros e rotundos. Rodeando o maior deles, o visitante encontra uma fenda na rocha de onde flui um fio de areia finíssima, a mesma areia muito branca que forra as centenas de metros em torno. Não se sabe há quantos anos flui aquela areia, mas é voz corrente que ela um dia cobrirá o mundo.
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