Artigos de Braulio Tavares em sua coluna diária no "Jornal da Paraíba" (Campina Grande-PB), desde o 0001 (23 de março de 2003) até o 4098 (10 de abril de 2016). Do 4099 em diante, os textos estão sendo publicados apenas neste blog, devido ao fim da publicação do jornal impresso.
quarta-feira, 12 de maio de 2010
2033) Doc Sportello, detetive (13.9.2009)
Thomas Pynchon é uma espécie de desconstrutor de gêneros literários. O romance de guerra em V, o thriller-de-teoria-da-conspiração em The Crying of Lot 49, o romance hippie em Vineland, o romance histórico-científico em Mason & Dixon e assim por diante. Os gêneros servem a Pynchon como mero pretexto para derramar sua cachoeira de discurso único e inconfundível. O livro mais recente de Pynchon, Inherent Vice, é um romance policial “noir” tendo como protagonista Doc Sportello, um detetive californiano que é uma espécie de Philip Marlowe continuamente sob efeito de maconha. Desses modo, o livro, ambientado nos anos 1970, pode ser por um lado uma homenagem aos clássicos policiais de Raymond Chandler, e por outro uma leitura pynchoniana dos romances-de-geração do pessoal que viveu a época das drogas, como certos livros Tom Robbins, Richard Brautigan, William Burroughs, Philip K. Dick, etc.
Walter Kirn, escrevendo sobre o livro, diz: “A grande conclusão das investigações não-lineares de Doc, a revelação na qual ele tropeça a despeito de si mesmo, é que ele e seus amigos amantes da liberdade (os detetives particulares e os hippies que, percebemos por fim, assemelham-se no que têm de marginais em busca da verdade) foram encurralados pelos caretas, seus inimigos naturais, e passarão a viver monitorados com seu próprio consentimento, para preservar a segurança em que ostensivamente vivem”. Detetives e hippies doidões, unindo-se para combater o Sistema, lembram de imediato a cisão mental do protagonista de O Homem Duplo (“A Scanner Darkly”) de Philip K. Dick, uma das obras mais incômodas do autor.
Neste livro, um policial passa a vida vigiando a casa onde um sujeito costuma receber seus amigos para tomar drogas; e faz relatórios constantes sobre o que se passa na casa. A certa altura do livro, depois de acompanharmos tanto o drogado quanto o policial, percebemos que os dois são a mesma pessoa. A escravidão às drogas e a obediência à polícia dividiram a tal ponto sua personalidade que ele vive, sem o saber, uma vida dupla. Investiga a si mesmo, denuncia a si mesmo. O filme O Homem Duplo (2006) de Richard Linklater é uma boa adaptação (misturando atores e desenho animado) dessa narrativa paranóica.
Dick (nascido em 1928) e Pynchon (nascido em 1937) viveram como adultos a última época de ouro das drogas nos EUA, os anos 1960-70. O livro de Dick, que tecnicamente é de ficção científica, é dedicado, no final, a uma longa lista de amigos que, na vida real, foram destruídos pelas drogas. Pynchon, ainda vivo e em plena atividade, usa os temas do romance de detetive para percorrer em retrospecto (quatro décadas depois) o território minado de uma época em que as pessoas tomavam drogas por idealismo romântico ou por necessidade de uma experiência espiritual. É o título mais recente na estante das obras em que a busca do Sonho Americano se transformou na Bad Trip terminal que ainda assola a América.
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