domingo, 25 de abril de 2010

1954) A mania de exatidão (13.6.2009)




(quadro de Georges Seurat)

Acho incômodo conversar com pessoas de mentalidade muito minuciosa, cuja mente parece uma folha de papel milimetrado, onde tudo tem que ocupar uma coordenada precisa, punctual (para distinguir de “pontual”, cumpridor de horários). 

Chega a conta do bar, para uma turma de cinco pessoas, eu dou uma olhada e anuncio a todos: “Deu 130”. Meu colega do lado corrige: “Não, deu 132”. Bem – se é para dividir por cinco, a diferença vai se diluir em meros centavos, aos quais não dou importância. 

Alguém pergunta: “Que horas são?”. Eu digo: “Duas e meia”. O outro corrige: “Na verdade, duas e 28”. E assim vai. 

Não digo que ele está errado. Está mais certo do que eu. Mas em certas circunstâncias quem pergunta não quer o número exato, quer apenas ter uma idéia. Quer saber se a conta deu mais de cem reais. Ou se já passam das duas horas. Eu, pelo menos, quando pergunto, pergunto com esse intuito.

É diferente, claro, quando precisamos lidar com uma cifra exata – para anotar no canhoto o valor de um cheque, ou para saber se vamos chegar a tempo para o filme que começa às oito em ponto. Em casos assim, qualquer minutinho faz diferença. 

Mas o maníaco por exatidão não relaxa. “Deu muita gente no Fla-Flu?”, pergunta alguém. Eu respondo: “Mais de trinta mil”. Por mim, tá respondido. Não foram 10 mil, nem 50 mil. Mas o colega acode, pressuroso, jornal em punho: “31.230 pagantes, 34.870 presentes”. Nada contra – mas não creio que a resposta dele responda aquela pergunta mais do que a minha.

Também ocorre no discurso literário. Vez por outra leio num romance qualquer: “Entramos no escritório dos advogados e fomos recebidos por um homem alto, aparentando 41 anos de idade...” Por que essa exatidão? Qual a diferença entre aparentar 40 e aparentar 41 anos? 

Quando eu avalio idades das pessoas, geralmente é em saltos de 5 anos. Esse aqui tem cara de 30, o que está ao lado parece ter 35, o de lá deve ter uns 40... É uma faixa de probabilidade. Não consigo imaginar que detalhes podem dar a alguém essa sintonia fina de perceber diferenças de um ano apenas.

Os escritores realistas, no entanto, são viciados em exatidão. Acham que isto confere credibilidade. “Eu estava ao telefone quando entrou na sala uma morena curvilínea, de cabelos longos, de 1,77 de altura...” Como ele sabia que não eram 1,76? 

Note que se o discurso literário é feito em nome do chamado “narrador onisciente” tudo bem, porque este, por convenção literária, pode nos informar até a quantidade de átomos que tem em cada um dos fios de cabelo desta beldade. Mas que personagem é este que num relance fotografa a altura exata de outra pessoa? O mundo excessivamente nítido em que vivem me incomoda. 

No que se refere a números, sou meio difuso. A menos que haja uma necessidade de ordem prática, objetiva, capto apenas os grandes volumes e as grandes massas, não ligo para contornos e detalhes. Como dizia Caetano, “pense Seurat, pense impressionista”.





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