domingo, 18 de abril de 2010

1928) Os dois tipos de música (14.5.2009)




Muitas discussões sobre música popular e música erudita se encerram assim: “Essa divisão não faz sentido. O que existe mesmo é música boa e música ruim”. Tudo bem; mas falando em bom e ruim entramos num nevoeiro cerrado que faz empacar qualquer discussão mais séria. Quando tudo se resume a gostar ou não, ficamos desprovidos de um crivo externo de comparação. Precisamos de uma distinção que possa ser estabelecida “de fora”. Por isso sugiro uma: “Existem dois tipos de música: música para ouvir, e música para dançar”. Ou seja – podemos dizer que existe música para a mente, e música para o corpo. Existe música feita para ouvir e música feita para dançar, embora algumas músicas sirvam para as duas coisas, e muitas não sirvam para nenhuma.

À primeira vista é um Muro de Berlim nítido e intransponível. Música para ouvir, por exemplo, é João Gilberto; música para dançar é Zé Calixto e seus 8 Baixos. Numa temos o recolhimento intimista de quem, a sós, à meia-noite e à meia-luz, tilinta um uísque no copo quadrado, semicerra os olhos e se entrega aos desfrute do tom, do som, do timbre, da textura, do entrecruzar das harmonias, do modo como voz, violão, melodia e letra se entrelaçam. Na outra temos o resfolego frenético do instrumento, e as percussões sacudidas, segurando o ritmo implacável, daquele tipo que basta a gente ouvir para começar a balançar alguma coisa, seja lá o que for.

Isto não impede, contudo, que a gente escute Zé Calixto (ou qualquer música-para-dançar, do rock ao reggae) para curtir a beleza musical do que está sendo feito. Nada impede que ao som de uma bossa-nova sofisticada o sujeito conduza a “cavaleira” ao salão e ali se entregue à nobre versão vertical da mais antiga das artes. Alguém dirá: “Oi, e música clássica? Já se viu alguém dançar música clássica?” Bom, talvez ninguém dance John Cage ou o Cravo Bem Temperado de Bach; mas não esqueçamos as valsas de Strauss & Cia., que eram o filé da música dançante do seu tempo, assim como as músicas para balé clássico, que são compostas, sim, pensando em coreografia, pensando em passos a serem executados por corpos humanos. Será que os grandes balés de Tchaikovsky seriam ou não dançantes numa “balada” de hoje? Este é um detalhe circunstancial que não cancela o fato mais amplo de que aquela música foi feita para um tipo de dança, tão legítimo quanto qualquer outro.

O jazz era freneticamente dançado nos anos 1920, 30, 40. Vemos nos documentários antigos uma orquestra tocando no palco e centenas de negros mandando ver no salão. Sofisticou-se, intelectualizou-se, mas a pulsação dançante ainda estala o dedo ao longo das semifusas. Algo parecido se defende hoje para o frevo. Muitos compositores e instrumentistas querem que o frevo não seja apenas um pretexto para “fazer o passo” no Carnaval, mas uma música que cresça em si própria e possa ser ouvida pela beleza de música que contém.





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