Artigos de Braulio Tavares em sua coluna diária no "Jornal da Paraíba" (Campina Grande-PB), desde o 0001 (23 de março de 2003) até o 4098 (10 de abril de 2016). Do 4099 em diante, os textos estão sendo publicados apenas neste blog, devido ao fim da publicação do jornal impresso.
sexta-feira, 16 de abril de 2010
1922) Bloqueio no eu poético (7.5.2009)
Em seu segundo LP, lançado em 1967, Chico Buarque incluiu uma bela canção intitulada “Com açúcar, com afeto”. No texto de contracapa, comentando o disco, ele diz: “Insisti ainda em colocar no disco o ‘Com açúcar, com afeto’, que eu não poderia cantar por motivos óbvios. O problema foi solucionado com rara felicidade pela voz tristonha e afinadíssima de Jane, que ao lado de seus dois irmãos Morais, enfeitou a ‘Noite dos Mascarados’".
Vejam como o nosso poeta evoluiu mais do que um Pokemon! “Não poderia cantar, por motivos óbvios”. O motivo óbvio é que a letra da canção nos mostra uma mulher, na primeira pessoa, dirigindo-se ao marido ou companheiro, e dizendo que faz de tudo para prendê-lo em casa, mas ele só quer saber da boemia: “Com açúcar, com afeto, / fiz seu doce predileto / pra você parar em casa... Qual o que! / Com seu terno mais bonito / você sai, nem acredito / quando diz que não se atrasa...” A narradora da canção é uma típica mulher-de-malandro numa versão light. Afinal, o cara não a maltrata nem a explora – apenas quer se divertir, com uma inocência que não existe mais. Chega na madruga e ela o recebe: “E ao lhe ver assim cansado / maltrapilho e maltratado / ainda quis me aborrecer... Qual o que! / Logo vou esquentar seu prato / dou um beijo em seu retrato / e abro os meus braços pra você”.
O único motivo para Chico não cantar isto hoje só poderia ser a ira das feministas anti-amélia. Mas naquela época um homem cantar letra em nome de uma mulher ainda era uma coisa estranha. Surgiriam piadinhas de duplo sentido, etc. E tudo por que? Pela visão “naïf”, que ainda existe muito nas platéias artísticas, e que identifica o Eu do personagem com o Eu do autor. Se se ouve alguém cantando uma canção e dizendo “eu acho isto, eu fiz aquilo”, pressupõe-se que é o Eu do cantor ou do autor da música. Para essa mentalidade, todo texto lírico é autobiográfico.
Chico Buarque rapidamente rompeu com essa convenção e talvez seja hoje o compositor de MPB que mais escreveu (e gravou) canções na primeira pessoa com “eu” feminino. Não farei a lista porque nesta coluna não cabe, mas a constância e a competência com que ele explorou esse sub-gênero o fez ser chamado “o Chico Xavier da alma feminina”.
“Je est un autre”, disse famosamente Arthur Rimbaud. Eu é um outro; eu é outra pessoa. Quem pronuncia a palavra Eu não é tudo aquilo que eu sou, é apenas um setor que toma a frente, como um partido que chega ao poder e passa a falar em nome de todo mundo. Tem gente que comete um crime e diz: “Foi o Demônio que se apossou de mim”. Não foi o Demônio, meu camarada: foi o Eu. Quando pronunciamos esta sílaba o fazemos em nome de tudo que existe dentro de nós. Por que esperar, então, que quando um poeta diz “Eu” num poema esteja sendo autobiográfico? “Eu” envolve, como dizia Pessoa, “o eu profundo e os outros eus”, porque, como disse Mário de Andrade, “eu sou trezentos, sou trezentos e cinqüenta”.
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