Artigos de Braulio Tavares em sua coluna diária no "Jornal da Paraíba" (Campina Grande-PB), desde o 0001 (23 de março de 2003) até o 4098 (10 de abril de 2016). Do 4099 em diante, os textos estão sendo publicados apenas neste blog, devido ao fim da publicação do jornal impresso.
quinta-feira, 8 de abril de 2010
1884) “Quem quer ser um milionário” (24.3.2009)
O vencedor do Oscar deste ano é uma co-produção inglesa-americana rodada na Índia, mas é como filme indiano que conquista nossa simpatia. Apesar de milênios de distância, há uma sintonia de inconsciente coletivo entre Índia e Brasil. São dois países tão parecidos que Pedro Álvares Cabral descobriu um quando procurava o outro.
O filme confessa ser influenciado por Cidade de Deus. Vi gente ficar indignada; eu acho ótimo. Quando imitamos os americanos, diz-se que não temos personalidade; quando eles nos imitam, diz-se que damos idéias de graça. Ora, amigos, os americanos só não imitam o que desconhecem, e só não são imitados pelos que ainda não invadiram. Slumdog Millionaire mostra favelas que não perdem para as nossas, e um elenco de atores infantis iguaizinhos aos guris que nos pedem uma moeda na calçada. Até seus gangsters são clones dos nossos bicheiros.
O grande trunfo comercial do filme é um roteiro que reúne tudo que a Academia gosta de premiar e os americanos de assistir: disputa entre o irmão bom e o irmão mau, história de amor com sucessivas separações e reencontros ao longo dos anos, rapaz pobre que fica rico, crime que não compensa, amor que triunfa. E tem um trunfo técnico. O argumento é um Ovo de Colombo: um rapaz favelado acerta uma dúzia de perguntas aleatórias num programa de TV, e a cada pergunta feita surge um flash-back para mostrar (da maneira mais simples e convincente) por que motivo o rapaz sabia a resposta para justamente aquela pergunta.
Note-se que nem sempre ele sabe a resposta. Em um caso, alguém lhe aplica um golpe e ele recorre à sabedoria da rua (ou seja, à sua percepção instintiva da desonestidade) para evitá-lo; e há outra vez em que ele simplesmente joga, aposta, arrisca, sem medo, sorridente, de peito aberto, que é como se deve jogar o jogo. Se perder, perdeu, e daí?
Vi no jornal USA Today um comentário curioso do filme, assinado por Claudia Puig. Diz ela que o filme tem “uma narrativa vigorosa e um estonteante realismo mágico”; mais adiante, fala de “imagens surrealistas”. É curioso, porque não vi nem uma coisa nem outra. Para mim é um filme absolutamente realista do começo ao fim (com exceção da canção durante os letreiros finais). Mas eu entendo. Por exemplo: para um americano, um garoto pular dentro de uma fossa e sair correndo, coberto de excremento, para pedir um autógrafo, é realismo mágico. Para nós, é tão real quanto uma cena de Nelson Rodrigues.
A indústria subterrânea de fabricar meninos mendigos não é surrealismo: é Charles Dickens puro. A espantosa pobreza da Índia, mesclada a uma riqueza igualmente inconcebível, cria enormes tensões sociais que são o terreno ideal para a produção de histórias em que algumas pessoas são totalmente indefesas e outras totalmente poderosas, em que alguns são totalmente ingênuos e outros totalmente malévolos. É o terreno ideal para o melodrama e o folhetim.
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