domingo, 4 de abril de 2010

1860) Adeus, Carnaval (24.2.2009)




(Di Cavalcanti, Pierrô, Arlequim e Colombina)

Já me disfarcei de palhaço, com rodelas carmesim nas bochechas, peruca de ráfia, óculos-nariz-bigode à la Groucho Marx, suspensórios compridos, calça balão. Saí de rua afora, com um tênis direito preto e um sapato esquerdo marrom, rodando reco-reco, virando bunda-canastra na rua coberta de confetes úmidos e serpentinas partidas. Belisquei a poupança das vizinhas, roubei pirulito de menino chato, parei o trânsito, ajudei os moleques a esguichar água nos carros com um cabo de vassoura enfiado num tubo de PVC. Bebi caipirinha até cair nocauteado; ninguém me reconheceu.

Já saí de papangu, juntei-me a uma meia-dúzia e saímos a pé pela cidade afora, emburacando na casa dos conhecidos, imitando a voz de Chacrinha, metendo a mão nos salgadinhos expostos sobre a mesa, localizando o uísque do dono da casa e usufruindo, tirando uma casquinha nos atributos da esposa e das filhas, que erguiam os braços eufóricas, “é Carnaval!”. Ninguém desconfiou.

Já me vesti de odalisca, dois peitos de quenga-de-coco amarrados com elástico, saiote florido pedido emprestado à cozinheira, as pernas brancas e cabeludas com coraçõezinhos pintados de batom. Rebolei pela avenida, seguido por um magote de pirralhos batendo lata, subi em jipe, agarrei os bêbos pedindo “me dê um cheiro, sordado!”, atirei beijinhos para as famílias na janela. Ninguém se preocupou.

Já vesti camisa do Campinense, hábito de franciscano, roupão de seda de madame russa, macacão de aqualouco, travesseiro de nove meses, cartucheiras de cangaço, touca e fraldão de bebezinho, caveira de assombração, macacão de proletário, estopas de alaúça, turbante de beduíno. Já saí de Dorothy; de Espantalho; de Homem de Lata; de Leão Medroso. Já saí de John, de Paul, de George, de Ringo. Já me fantasiei de jovem guarda (franja, anel brucutu, pulseira de correntinha), de materialista dialético (barba, camisa de brim, calça jeans, Georges Politzer sob a axila), de tropicalista (cabelão, camisa tingida com espelhinho costurado no peito, chinelões de pneu), de beatnik (boné, oclinhos sem aro, casaco de veludo), de grunge (calçona frouxa, camisa social por fora da calça, barba ao Deus-dará, brinquinho na orelha).

Já me fantasiei de defensor dos pobres e de flagelador da burguesia, de Explicador do Inefável e de Dissecador do Falsamente Óbvio, de humanista boa-praça disposto a perdoar as falcatruas alheias, de operário padrão que sua sangue e vomita bile para entregar o troço no prazo e esperar um ano o pagamento, de pai de família exemplar disposto a engolir um sapo por minuto e a ter sempre um hálito primaveril, de mané capaz de cruzar incólume a saraivada de indiretas e subentendidos às minhas custas na mesa de bar, de bom samaritano sempre disposto carregar a cruz alheia enquanto a minha criava raízes sem que eu pudesse rebocá-la para a oficina. Tive o direito de ser tudo que não sou, e só por isso vale a pena esperar mais um ano inteiro. É hoje só, amanhã não tem mais.



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